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segunda-feira, 15 de abril de 2013

REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL


Acabei de ler recentemente dois livros sobre preservação do patrimônio cultural escritos por advogados que atuam na área. E essa leitura me passou a forte impressão de que essa área tem deixado de ser um campo de atuação privilegiado de arquitetos, como até bem recentemente se apresentava no Brasil, para se tornar um campo privilegiado de atuação de advogados. Quero deixar claro desde já que não sou contra a atuação de advogados na área da preservação do patrimônio cultural. Muito pelo contrário! Creio que essa área necessita cada vez mais de advogados que entendam da legislação referente ao assunto e que saibam atuar a favor da preservação do patrimônio. Sim, para atuar a favor! Porque atuando contra já tem muita gente. 


Desde o estabelecimento das políticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil, o instituto do tombamento se vê às voltas em disputas jurídicas. Principalmente em conflito aberto com o direito de propriedade, uma vez que com o tombamento surge a chamada limitação administrativa da propriedade privada dos bens tutelados, como explicam Nilo Lima de Azevedo e Wilson Coury Jabour Júnior, no seu livro Reflexões e Olhares, sobre o estabelecimento da prática de preservação do patrimônio cultural em Juiz de Fora (MG). É verdade que uma parcela da culpa do estabelecimento dessa situação de conflito coube à forma autoritária como o então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) conduzia os processos de tombamento nos primeiros anos da sua atuação, guiado pela urgência requerida pela “retórica da perda”. Os proprietários dos bens escolhidos para fazer parte do acervo do patrimônio cultural nacional eram apenas informados que o seu imóvel havia sido tombado pelo órgão e que, a partir de então, eles teriam que seguir uma série de restrições. A primeira reação desses proprietários, para quem a tutela do IPHAN feria o direito de propriedade sobre o seu bem, era instituir um advogado que os auxiliasse a recuperar o direito que eles acreditavam que o órgão os estava roubando. A ideia de que um bem particular podia exercer uma “função social” era totalmente nova no Brasil e, por isso mesmo, muito mal compreendida pelos proprietários. O SPHAN também não se incomodou, nos seus primeiros anos de atuação, com ações de educação patrimonial para esclarecer o que significava ser proprietário de um bem tombado. Estabeleceu-se, por isso, uma espécie de diálogos de surdos, onde um interlocutor não conseguia escutar as razões do outro.

Acontece que o transcorrer de oito décadas não foram suficientes para alterar essa situação e garantir a prevalência da valorização da dimensão social/coletiva de um imóvel sobre o paradigma liberal de propriedade ainda muito forte no Brasil. Ou, cada vez mais forte, na medida mesma em que a onda neoconservadora que nesse momento se espalha pelo país faz com se dissemine cada vez mais a adoção do ideário econômico/político/social liberal, onde o direito à propriedade privada reina absoluto como direito fundamental. E hoje em dia, ainda ou cada vez mais, os proprietários de bens que apresentem interesse cultural para preservação, principalmente os localizados em áreas urbanas valorizadas pela especulação imobiliária, fogem da possibilidade de tombamento da sua propriedade de todas as formas possíveis. E, a mais utilizada delas, é a instituição de um advogado para garantir o seu direito de propriedade. Por isso, volto a repetir, é muito importante que tenhamos profissionais advogando a favor da causa do patrimônio. 

O que me incomoda nessa situação é o fato de que, cada vez mais, as decisões em torno da preservação ou não de um bem cultural, tem sido guiadas não por debates a respeito da sua valorização artística ou histórica, como deveria ocorrer; mas antes por debates a respeito da legalidade das políticas de preservação. Os advogados instituídos pelas partes interessadas na não preservação dos bens contestam os processos de tombamento baseados em pareceres jurídicos a respeito da constitucionalidade das leis de proteção ou da competência legal das instâncias instituídas para deliberar a respeito das políticas de preservação. Esses mesmos advogados, por vezes, mostram um desconhecimento completo a respeito dos conceitos e discussões que embasam as práticas de preservação do patrimônio cultural. Para eles não importam as discussões sobre a natureza material ou imaterial do patrimônio, a valorização do seu conteúdo simbólico, a pertinência da sua preservação como elemento construtor de uma memória social e de uma identidade coletiva, etc. O que interessa a eles é encontrar as brechas nas leis que instituem as políticas de preservação do patrimônio para que eles possam questionar a legalidade do ato. De acordo com os cânones da sua prática profissional, advogados assumem posições apriorísticas nas disputas em que estão envolvidos. Desde o início da sua atuação nas contendas, eles escolhem um lado para defender. O lado do seu contratante, obviamente. De acordo com essa postura, e para fazer valer os seus honorários, eles não estão dispostos a ouvir os argumentos do lado contrário, a não ser para rebatê-los; e muito menos a mudar de lado, reconhecendo a razão do outro lado, se for o caso. O que não acrescenta em nada na discussão a respeito da preservação do patrimônio cultural. 

Mais uma vez, eu repito e faço questão de deixar claro: não sou contra a atuação de advogados no campo do patrimônio cultural. Muito pelo contrário! Acredito mesmo que a análise do patrimônio cultural como objeto jurídico é um campo de atuação muito fértil para advogados, como mostra o recém-publicado livro de Yussef Daibert Salomão de Campos sobre a legislação em torno do patrimônio cultural imaterial: A Percepção do Intangível. Porém, um pedido de tombamento (ou de qualquer outro tipo de preservação) deve ser aceito ou refutado por profissionais que conheçam o significado do conceito de patrimônio cultural, que estejam a par da história das práticas de preservação do patrimônio no Brasil e no mundo e de toda a trajetória das discussões em torno do assunto, que saibam debater os temas que hoje embasam e orientam essas práticas, tais como: a inadequação do uso das ideias de excepcionalidade e autenticidade (consagradas, porém ultrapassadas), a inclusão do conceito antropológico de cultura na atribuição de valor dos bens, a não separação ou hierarquização dos bens pela sua natureza (material ou imaterial), a importância da atribuição de valor ao bem pela comunidade que o cerca, etc. O profissional que pretende trabalhar na área da proteção do patrimônio cultural, ou mesmo aquele que pretende se colocar contra a proteção, deve dominar esses temas. Pouco importando qual seja a sua formação. Porque senão, estaremos sempre reproduzindo um diálogo de surdos.


4 comentários:

  1. Gostei muito do seu espaço e das suas reflexões. Certamente voltarei.
    Beijos,
    Roberta

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    1. Obrigado, Roberta.
      Volte sempre que desejar e sinta-se a vontade para flanar pelos posts.

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  2. Prezado Sérgio,
    Agradeço a parte na qual há o elogio. Quero corrigi-lo em um ponto. Não sou advogado. Sou bacharel em Direito pela UFJF, especialista em gestão do Patrimônio Cultural (Granbery/Permear), mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural pela UFPel, e doutorando pela UFJF.
    Logo, pode notar meu viés acadêmico.
    Acredito que a leitura em torno do patrimônio e sobre o patrimônio deve ter sim uma visão especializada. Muitos apropriam-se, em seus ofícios, desse objeto transdisciplinar sem o conhecer. Mas não podemos ratificar a ótica meramente acadêmica. É preciso que a comunidade envolvida na preservação e/ou salvaguarda de um bem esteja envolvida nesses processos. Como ensina Aloísio Magalhães, o patrimônio não pode ser instituído simplesmente de cima para baixo!

    Abraços,
    Yussef Campos

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  3. Olá Yussef,

    Obrigado pelo comentário e pela correção. Espero não ter cometido mais nenhum deslize, principalmente no que se refere à utilização do jargão jurídico, uma vez que sou leigo na área.

    Concordo plenamente contigo e mais ainda com Aloísio Magalhães. Se a nossa formação acadêmica deve servir para alguma coisa nessa área, deve ser para dialogar com a comunidade diretamente envolvida na preservação de um bem. E nunca para impor decisões a ela.

    Volte sempre que desejar e sinta-se a vontade para flanar pelos outros posts. Pode ser que você encontre algo mais que te interesse.

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