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quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL III

Sem desculpas pela longa ausência dessa vez (até porque o abandono do blog é indesculpável) vamos logo para o primeiro post desse ano de 2014. O fato é que eu sofro de falta de prazos. Me dê um prazo para entregar um texto e ele estará pronto no dia anterior. Mas, não estabeleça prazo algum e nunca será feito. (rsrsrs) Vejamos se a minha indolência não me faz perder o bonde das manifestações que estão marcadas para sacudir as cidades do Brasil nesse ano. Infelizmente, os anos passam mas os problemas para quem vive nas cidades do nosso país continuam os mesmos.  Ou pioram... Até mesmo por isso, vou iniciar esse ano contando uma história que ocorreu no início do ano passado, mas que continua atual. Em Janeiro ou Fevereiro do ano passado eu enviei um e-mail para todos os 19 vereadores que atualmente compõem a Câmara Municipal da cidade onde moro, na intenção de chamar a atenção deles para o estado de abandono em que se encontrava (se encontra) o Patrimônio Cultural municipal. Como naquele momento estavam todos iniciando os seus mandatos, eu tinha a esperança de que algum deles tivesse interesse em levantar a bandeira da defesa da cultura e do Patrimônio Cultural. Até mesmo porque, das diferentes plataformas utilizadas para se elegerem (ou reelegerem), eu não tinha visto nenhum que incluísse no seu discurso esse tema. Reproduzo abaixo o e-mail que enviei para os vereadores:


Prezado(a) Vereador(a),
Na qualidade de professor de História especialista na área de Patrimônio Cultural (com experiência profissional no IPHAN e no Departamento de Patrimônio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro); mas, principalmente, na qualidade de morador de Juiz de Fora, venho por meio desta, pedir a sua atenção para a atual situação do Patrimônio Cultural da cidade. Diante de tantos temas considerados, por alguns, mais urgentes ou mais importantes (como a saúde ou o trânsito) a cultura e o patrimônio cultural têm sido sistematicamente relegados ao segundo plano, não recebendo a atenção que merece por parte do poder público municipal. Não obstante o volume significativo de bens culturais materiais e imateriais que compõem atualmente o Patrimônio Cultural do município, que conta hoje com um total de 172 bens culturais imóveis e 5 acervos documentais tombados (sendo 3 desses bens protegidos também em nível federal), 7 bens culturais imateriais registrados e 7 núcleos históricos estabelecidos.
Eu gostaria de fornecer apenas um exemplo a esse respeito: o do estado de conservação do conjunto arquitetônico da Praça da Estação, primeiro Núcleo Histórico da cidade, criado em 29 de dezembro de 1999, como forma de reconhecimento da importância daquela área para a história da cidade. Quem hoje é obrigado a pegar um ônibus na Praça da Estação não pode deixar de observar o estado de abandono em que se encontra o Prédio da Estação (também tombado desde 1999), a passarela sobre a linha férrea e o seu entorno. Principalmente para o lado da Avenida Brasil, a área se encontra muito suja, tendo se tornado local de moradia para a população de rua, podendo ser encontradas ali, inclusive, fezes humanas. A degradação da área, que deveria ser o primeiro cartão postal da cidade, foi objeto de uma extensa reportagem veiculada no MGTV de 23 de maio de 2012, que informou também que o IPHAN já havia aprovado um projeto de restauração do conjunto arquitetônico no valor de 12 milhões de reais. A execução do projeto, porém, não tinha data para o seu início. E, de fato, não saiu do papel até o presente momento. [Aqui abro um parêntese. Escrevi esse e-mail há mais de um ano. E até hoje, janeiro de 2013 o projeto de restauração aprovado ainda não saiu do papel e nem tem data para sair]. A área, todavia, carece de ações emergenciais por parte do poder público, que incluam ações de limpeza, de tratamento urbanístico e de segurança: como a substituição dos abrigos de ônibus, pintura, iluminação e reforço no policiamento.

Vista noturna da parada de ônibus intermunicipais atrás da Praça da Estação. Na foto ela parece muito mais iluminada do que realmente é.

Creio não ser preciso ressaltar a importância da preservação do patrimônio cultural para o município. Não apenas como forma de preservação da história da cidade e elemento de constituição da identidade de seus habitantes; mas também por motivos muito menos abstratos e mais pragmáticos. É notoriamente reconhecido que o patrimônio cultural representa hoje um valioso potencial turístico para os municípios que aprendem a explorá-lo sem destruí-lo. Juiz de Fora já desempenha atualmente o papel de polo de atração para os habitantes de diversos municípios da Zona da Mata mineira, que vem para cá estudar ou trabalhar. A preservação e divulgação do seu rico acervo de bens culturais poderia fazer de Juiz de Fora também destino turístico, não apenas desses mesmos habitantes, mas de pessoas de outras partes do país. Aproveitando-se do já estabelecido fluxo turístico que demanda outras cidades do Estado (em particular, as chamadas cidades históricas), para alavancar o seu potencial turístico e, com isso, trazer um considerável aporte de verbas.
Cabe aqui mais um exemplo: a situação da Festa Alemã do Borboleta, que parece encolher a cada ano devido ao descaso da Prefeitura Municipal com a sua realização. Enquanto Petrópolis, que organiza um evento congênere, tem a lotação da sua rede hoteleira esgotada durante o período da sua Bauernfest, que foi incluída no Calendário Oficial de Eventos do Estado do Rio de Janeiro; e a já tradicional Oktoberfest, atrai todos os anos em torno de 600.000 turistas do Brasil inteiro à cidade de Blumenau, no Estado de Santa Catarina. Eventos do gênero se disseminaram pelas diversas regiões do país que tiveram a colonização alemã como parte da sua história e são frequentados por um público crescente e fiel. A Deutsches Fest juizforana merecia um maior apoio por parte do poder público municipal na sua organização e divulgação, como forma de integrar o calendário anual desse gênero de festividades e de atrair esse mesmo público fiel para Juiz de Fora. Além disso, um evento tradicional, que preserva a memória de uma parte significativa da história do município, deveria ser objeto de um registro como Patrimônio Cultural Imaterial do Município.
A preservação do patrimônio cultural de Juiz de Fora não pode e não precisa depender de megaprojetos milionários que demoram a ser aprovados e demoram mais ainda a ficarem prontos, como o citado projeto de restauração do conjunto arquitetônico da Praça da Estação. No caso específico do significativo patrimônio ferroviário tombado pelo município, por exemplo, poderia ser buscada uma parceira público-privada com a MRS, principal empresa exploradora do setor. O patrimônio cultural pode ser preservado mesmo nos exemplos mais simples de mobiliário urbano, tais como as placas de nomes de ruas ou totens, a exemplo do que é feito no Rio de Janeiro. Ação para a qual não é necessário um grande investimento. 
Envio essa mensagem, certo da sua preocupação em fazer o melhor para o desenvolvimento de Juiz de Fora, e confiando em que o(a) prezado(a) Vereador(a) não ficará inerte frente à situação preocupante que ora exponho.


Como já escrevi em post anterior, desde a sua implementação no Brasil, na década de 1930, a prática de preservação do patrimônio cultural e de defesa do interesse público e se vê em conflito aberto com os outros agentes que atuam no espaço urbano em busca de interesses privados: proprietários de imóveis antigos, construtoras, empreiteiras, a iniciativa privada de forma geral (que no Brasil tem uma séria dificuldade de compreender o conceito de patrimônio público) e, até mesmo, o Estado, cuja principal preocupação deveria ser a defesa dos interesses públicos e coletivos (mas a privatização do Estado no Brasil é tema para outro post). E esse conflito é particularmente acirrado aqui na cidade. No e-mail que enviei para os vereadores procurei argumentar que esse conflito entre a iniciativa privada e a defesa do interesse público poderia ser transformado em uma parceria que poderia ser lucrativa (financeira e simbolicamente) para os dois lados. Chamando a atenção para exemplos de cidades que exploram comercialmente, e lucrativamente, o seu patrimônio cultural (em particular, o caso da Festas Alemães). Apesar de alguns autores argumentarem que a identidade cultural não pode ser vista apenas como outro produto qualquer colocado no mercado. Argumentação com a qual eu concordo. Com a ressalva de que não a vejo como outro produto qualquer e sim um "produto especial", carregado de muito mais significados simbólicos, mas que  nem por isso não pode também ser valorizado monetariamente. O fato é que, no embate com a iniciativa privada e com o grande capital pelo direito de figurar no espaço da cidade, o patrimônio cultural sempre sai perdendo. Quando estão determinadas a explorar um certo espaço na cidade, as grandes construtoras não medem esforços(o que equivale a dizer que não economizam dinheiro) para fazer com que a construção que está ocupando aquele espaço venha ao chão. Se essa construção for preservada pelo Patrimônio Cultural ou tiver algum interesse cultural, essa tarefa só se torna um pouco mais dispendiosa, mas nunca impossível. Basta que se contrate os advogados mais caros à disposição no mercado ou, até mesmo, que faça com que seus interesses sejam representados no Executivo e no Legislativo municipais, estaduais ou federais. Ou alguém vê outro motivo plausível para algumas leis de proteção do patrimônio cultural preverem a exótica figura do "destombamento"?
 A ideia que eu defendi na ocasião, e que ainda defendo, é a de que há a possibilidade de se chegar a acordos entre a iniciativa privada e a proteção do interesse público no uso do espaço da cidade. Mas, até então, não tinha eu a ideia de como esses interesses privados tinham conseguido cavar um espaço considerável e se alojar dentro do legislativo municipal da cidade. As respostas que recebi e, principalmente as que eu não recebi, deixaram a situação bem clara para mim. Vou comentar essas respostas no próximo post porque esse já está gigantesco.