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domingo, 13 de maio de 2012

PEDAÇOS DE CIDADE

Ainda mais uma vez, vou publicar uma crônica escrita há muito tempo atrás. Apesar de já ter terminado a tese, ainda não consegui focar a cabeça para voltar a pensar em crônicas. Mas, agora é só uma questão de concentração. Essa crônica é um pouco diferente das outras que venho postando. É uma mistura de crônica e pesquisa histórica, sobre um monumento desaparecido do Rio de Janeiro. Dá para notar que ela é um pouco maior e contém muita informação e pouca reflexão. Foi escrita originalmente para ser publicada na coluna Memórias do Centro, da Folha do Centro, um periódico de circulação local que é (ou era. Não sei se ainda existe) distribuído gratuitamente. Essa é a segunda versão da crônica, que contou com algumas pequenas modificações feitas pelo meu grande amigo Felipe Eugênio. Espero que gostem.



Jalousies da Capela? Histórias do Recolhimento de Nossa Senhora do Parto


Não faz muito, um jornal de grande circulação na cidade publicou o resultado controverso de uma pesquisa, de finalidade duvidosa, que afirmava ser a carioca a mulher mais infiel do Brasil. Verídico ou não tal resultado, o melhor é não querer confirmá-lo, pela boa reputação de maridos, noivos e namorados da Cidade. Mais interessante é notar que tal infidelidade (se a há, é prudente manter a duvida) não é comportamento recente. Em artigo denominado Brasil de todos os Pecados, o professor Ronaldo Vainfas relata casos de traição (condenada, então, como pecado) ocorridos nos tempos do Brasil Colônia. Padres jesuítas e outros cronistas do tempo colonial eram incansáveis em denunciar e lastimar a “dissolução dos costumes”, que grassava na terra.
O que poucos moradores do Rio de Janeiro de hoje sabem é que, justamente nos tempos coloniais já existiu na cidade uma casa de recolhimento destinada a mulheres desonestas que estivessem arrependidas do seu mau passo. Tal era a finalidade do Recolhimento de Nossa Senhora do Parto, inaugurado em 1759, construído ao lado da capela de Nossa Senhora do Parto, erigida 110 anos antes (em 1649) por um carpinteiro mulato de nome João Fernandes. Este acabara de chegar ao Rio, vindo da Ilha da Madeira, trazendo consigo uma imagem daquela santa, e comprou um terreno para dar-lhe casa própria e condigna, construindo-a com os seus recursos e os de seus amigos. Já a construção do Recolhimento começou em 1742, e foi o bispo D. Frei Antonio do Desterro Malheiros que a principiou aplicando, para tanto, 40.000 cruzados deixados por um comerciante de nome Estevão Dias de Oliveira para serem distribuídos a bem da sua alma, depois de satisfeitos certos legados.
Estavam, o Recolhimento e a Capela, situados na Rua dos Ourives, se estendendo da Rua São José à da Assembléia, dando a impressão de formar um só conjunto. A rua dos Ourives ia desde a rua São José até a subida do Morro da Conceição. Antes de ganhar fama como dos Ourives, por nela se concentrarem os artesãos dessa especialidade, no século XVIII, era conhecida como o caminho da Conceição para o Parto (ou vice-versa), devido à existência, em sua extremidade sul, da Capela e do Recolhimento. A abertura da Avenida Rio Branco (1903-1906) a cortou em duas partes, sendo a parte que vai da rua São José à citada Avenida a atual rua Rodrigo Silva, e a que segue da Avenida ao morro da Conceição a atual rua Miguel Couto.
Sobre o aspecto da Capela, Joaquim Manuel de Macedo (romancista, cronista e professor de História do Colégio Pedro II nos tempos do Império) dizia que seu aspecto exterior era triste e sem majestade, afirmando que “a arquitetura não se ocupou dele nem metade de um minuto”. O Recolhimento tinha três pavimentos: o térreo contava com uma portaria ladeada de janelas e diversas oficinas; os 2º e 3º pavimentos tinham, para a rua dos Ourives, 17 e 18 janelas de peitoril (respectivamente); e, para as ruas São José e da Assembléia, duas janelas em cada pavimento.
   Apesar da finalidade de recolher mulheres que perdiam a virgindade em aventuras casuais, que desejassem deixar a perversidade do século para ali reformar os costumes repreensíveis, trocando-os por santo e regular comportamento (nas palavras de Joaquim Manuel de Macedo), não eram somente as arrependidas que entravam para o novo asilo. Macedo e Gastão Cruls (cronista do início do século XX) afirmam que, apesar do Recolhimento ter por fim receber mulheres convertidas ou as que estivessem descontentes com a vida conjugal, quase sempre eram os maridos que não estavam contentes com elas e ali as internavam. Segundo Macedo que lamentáveis abusos misturaram no Recolhimento esposas inocentes com esposas culpadas. Muitos homens se aproveitaram do asilo como uma arma de prepotência e disciplina doméstica, tornando-se aquele uma espécie de casa de correção feminina. Uma espécie de cadeia que fazia medo não só às más esposas como às esposas de maus maridos, e também às moças solteiras filhas de pais enfezados, cabeçudos e prepotentes. Afirma ainda Macedo que não havia fervura de briga de marido e mulher que não se abatesse com o encanto das terríveis palavras: “Olha o Recolhimento do Parto!”. As mulheres, em suas conversas, denominavam-lhe de Recolhimento do Desterro. Não porque ficasse próximo ao morro do Desterro (atual Morro de Santa Teresa), mas porque aquele asilo era, para elas, um desterro. E não só as casadas o maldiziam, mas também as solteiras, pois encerravam-se ali meninas e moças que ainda não haviam chegado na idade de casar a pretexto de irem receber educação moral e religiosa. Tudo isso, fruto da jalousie des hommes, o afrancesamento da palavra pontiaguda e peçonhenta: o ciúme masculino.
Apesar da solicitude do seu fundador que, ainda em seu testamento, legou 100$000 para este asilo, foi ele decaindo por falta de recursos. Porém, o Vice-Rei Luís de Vasconcelos (1779-1790) recuperou o Recolhimento e a Capela a partir de 1787. Segundo Moreira de Azevedo (outro cronista do Império), ainda trabalhava-se no interior da igreja quando o acaso ou o crime deu origem a um incêndio, nas primeiras horas do dia 24 de agosto de 1789, o qual consumiu a igreja e teria destruído também o Recolhimento se não fossem as prontas e enérgicas providências do Vice-Rei. Apenas extinto o fogo, cuidou ele em reconstruir os edifícios incendiados, encarregando da direção da obra ao Mestre Valentim da Fonseca e Silva (o mesmo que construiu o chafariz da Pirâmide, até hoje existente na Praça XV). Concluindo-se a reedificação em 3 meses e 17 dias, em 8 de dezembro do mesmo ano voltaram as recolhidas (que estavam abrigadas no Hospital da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência) em procissão para a sua casa, acompanhando a imagem de Nossa Senhora do Parto, a única que se salvara das chamas.

O incêndio do Recolhimento de Nossa Senhora do Parto, em pintura de Francisco Muzzi de 1789.

A partir de 1812, foi extinto o Recolhimento e foram as recolhidas transferidas para a Santa Casa de Misericórdia. Seu prédio transformou-se em Hospital da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo. Isso porque, chegando ao Rio de Janeiro em 1808, a Família Real Portuguesa solicitou o pavimento superior do edifício do Convento do Carmo, onde ficava o Hospital, para acomodar a Biblioteca do Palácio da Ajuda, que havia sido trazida de Portugal. Mas, sendo insuficiente apenas o pavimento superior, em Aviso de 3 de novembro de 1812, mandou o Governo desocupar o prédio do Recolhimento do Parto e determinou que a Ordem do Carmo mudasse para ali os doentes, deixando vazio também o pavimento térreo do Convento.
Em 1870, quando Moreira de Azevedo publicou sua obra, o edifício era ocupado pela Inspetoria de Instrução Pública, pelo Arquivo Público e pelo Instituto Vacínico. Foi, por fim, demolido em 1906, para o alargamento da rua da Assembléia, durante as reformas urbanas do prefeito Francisco Pereira Passos. Já então, os costumes eram outros e as mulheres que havendo pecado mundo, não careciam mais de ir, na solidão, suplicar ao céu o perdão e o esquecimento de suas faltas. Imaginaram um novo fim para a Capitu de Machado, não? Eu também. E ela escapou por pouco, pouquinho...

A capela de Nossa Senhora do Parto fica hoje no interior do prédio na rua Rodrigo Silva localizado onde antes existiam o Recolhimento e a Capela.