Apesar de não
ser minha intenção escrever um blog de memórias, vou me permitir iniciar essa crônica
com uma pequena lembrança de infância. A julgar pela minha criação, eu poderia
ser classificado como aquilo que é comumente chamado de “criança de
apartamento”. Daquelas que jogam bola de gude no tapete da sala, nunca soltaram
pipa ou ralaram o joelho andando de bicicleta. Porém, desde muito cedo também tive
contato com a rua. Lembro que com seis para sete anos tinha meu grupo de
amigos, todos moradores da mesma rua, com quem me reunia diariamente para
brincar depois da aula. Às vezes, em dias mais reflexivos que ativos, quando o
pique pega ou o futebol não nos atraía, gostávamos de conversar peripateticamente
dando a volta na quadra. Então, saíamos andando calmamente da frente dos nossos
prédios para direita ou para esquerda (para cima ou para baixo, uma vez que
nossa rua era uma ladeira), enquanto debatíamos sobre as grandes questões que
ocupavam o cotidiano da nossa infância. Que não deviam ser diferentes das
questões que preocupavam qualquer outro garoto da nossa idade. Caminhávamos
apenas pelo prazer de ver mudar a paisagem enquanto conversávamos, uma vez que
o ponto de chegada era o mesmo da partida. Visto a partir de hoje, poderia
dizer que essa foi a minha primeira experiência com o flanar. Não lembro mais
quanto tempo levávamos nessa aventura pelos arredores de nossas casas. Não
devia ser muito. Mas era, certamente, tempo suficiente para que minha mãe se
desse conta da minha ausência e ficasse, desesperadamente, chamando meu nome da
janela de casa, sem saber onde me meti.
Essa minha primeira
“aventura urbana” serviu não apenas para que eu perdesse, desde cedo, o medo da
rua, mas também para que eu desenvolvesse o meu amor pela cidade. Amor que deveria
ser cultivado desde cedo por todo mundo. A rua deveria fazer parte do processo
de descoberta do mundo da criança, da mesma forma que ela descobre os livros
quando está sendo alfabetizada. Sempre me intrigou a falta de intimidade de
algumas pessoas com o espaço no qual ela está inserida. Basta pedir uma
informação para ver como as pessoas desconhecem a cidade onde vivem. Mas o
conhecimento do espaço urbano não é apenas o domínio do mapa da cidade, mas
também da vida urbana e de seus personagens. Daqueles atores que estão na rua:
o jornaleiro, o carteiro, o mendigo, etc. Por isso, entrar em contato com a rua
é entrar em contato com a alteridade que se encontra para além do seu círculo
familiar mais íntimo. E esse contato com o outro, travado ainda durante a
formação da sua personalidade, pode impedir que a criança seja criada em um “aquário”,
cultivando verdades absolutas que não são postas à prova pela falta de trato
com o diferente. A “volta na quadra” faz com que a casa e a rua se tornem
espaços complementares, em vez de opostos.
À medida que eu
crescia, a minha volta na quadra foi ganhando em complexidade. Na adolescência
já havia adquirido o hábito de caminhar. Se algum compromisso pudesse ser cumprido
à pé, não me passava pela cabeça utilizar qualquer outro meio de transporte. E
mesmo por vezes, em tardes ociosas, gostava de caminhar sem destino certo,
apenas pelo prazer de conhecer as ruas e seus personagens. Com 15 anos já
conhecia a maior parte das ruas do meu bairro, incluindo atalhos, becos e mesmo
as ruas sem saída. Conseguia chegar relativamente rápido a qualquer ponto que
tivesse que ir: colégio, cinema, casa de amigos, dentista. Bom, para esse
último não havia pressa. E, então, meu conhecimento e amor pela rua poderia me
fazer escolher o caminho mais longo. Um pouco mais tarde, quando o meu bairro
se tornou pequeno, a minha volta na quadra começou a ganhar ares de uma
aventura real. Então, tomava um ônibus para outro bairro e descia em um ponto
aleatório para repetir ali o mesmo que já havia feito nos arredores de casa.
Andava pelas suas ruas, conhecendo os seus caminhos, gravando pontos de
referência, entrando em contato com outros tipos urbanos. Essa aventura contava
com um componente adicional, que era o seu real desafio: conseguir encontrar o
caminho de volta pra casa.
Talvez devido à
minha precoce experiência com a rua, acho curioso, e mesmo problemático,
perceber que cada vez mais o individualismo que caracteriza não só a nossa
sociedade como o nosso tempo, gera pessoas que não tem o mínimo apreço pelo
espaço urbano. Incluindo aí o mínimo apreço pelo contato com o outro. O
afastamento da rua, entendido apenas como local de passagem obrigatória, o enclausuramento
em casa, tem produzido pessoas cada vez menos aptas à vida em sociedade. Que se
fecham em condomínios afastados do centro, cercados por muros e guaritas de
segurança, e que apenas espiam a rua através da janela da sua casa ou do seu
carro com medo, desconfiança e repulsa. Pessoas que evitam, até mesmo, o
contato com os próprios vizinhos e que, quando são obrigados a interagir com o
outro, o fazem de má vontade, demonstrando desconhecimento das regras mais
básicas de sociabilidade. Essas pessoas têm a ilusão de que podem viver
isoladas da cidade. Tem gerado, mais do que isso, cidadãos que não se importam
com os problemas da sua cidade. Bastando que haja luz no poste em frente ao seu
portão e que a sua rua esteja com o asfalto em condições mínimas de conservação
para que ele passe com o seu carro. Esse tipo, que só pode ser chamado de
cidadão por um uso muito flexível do termo, não exige do Estado ou do seu
candidato a prefeito que ele apresente um projeto de cidade. E vota
repetidamente no mesmo charlatão que, ao longo do seu mandato, asfalta três
vezes a mesma avenida, afirmando estar realizando “grandes obras de
urbanização”. Não percebe que o seu descaso ajuda a tornar a cidade um lugar
cada vez pior não só para aqueles que vivem no e do espaço urbano, mas também
para ele próprio. Não compreendem que a sua qualidade de vida, tão arduamente
buscada pela construção de uma casa confortável e segura, depende de uma cidade
igualmente confortável e segura.
A “volta na
quadra” não é apenas uma diversão de criança. É uma necessidade. É o que nos faz
cidadãos de fato. Não há idade certa para que você coloque a cara portas afora
e comece a conhecer a sua vizinhança, seus caminhos, seus pontos de referência,
seus personagens e também seus problemas. Não há idade limite para a expansão
dos seus horizontes físicos, que deve ser também a expansão dos seus horizontes
psicológicos, mentais, intelectuais ou o nome que se queira dar. Basta ter a
vontade de começar a andar. Pois, como dizia outro poeta: “Um passo à frente e
você não está mais no mesmo lugar”.