Na semana passada os jornais noticiaram a decisão da
Prefeitura do Rio de recolher das escolas municipais o jogo Banco Imobiliário –
Cidade Olímpica. Para quem não sabe do que se trata, é uma nova versão do tradicional
jogo de tabuleiro, lançada no final de fevereiro em uma parceria entre a Brinquedos
Estrela e a Prefeitura do Rio. O jogo seria comercializado a partir de maio,
mas a Prefeitura já havia comprado 20 mil unidades do jogo para distribuir nas
escolas municipais, no valor de aproximadamente 1 milhão de reais. Dinheiro que
saiu do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB).
Verba que é repassada pelo Governo Federal aos municípios para investimento na
educação básica, como indica a própria sigla. A compra e distribuição do jogo
geraram críticas e protestos por parte de pais e professores, além de dois
inquéritos abertos pelo Ministério Público do Estado do Rio. A iniciativa foi
interpretada como propaganda do governo municipal, pois o jogo faz alusão a
obras feitas pela atual gestão. O
prefeito se defende dizendo que o lançamento do jogo foi uma decisão da Estrela
e que não se trata de propaganda política, porque foi criado depois das
eleições. Como se propaganda eleitoral se fizesse apenas em época de eleição.
De todo o imbróglio, que foi amplamente noticiado, a questão
que interessa a esse blog é como um jogo que, em tese, homenageia a cidade,
comemorando o fato dela ter sido escolhida como sede dos próximos Jogos
Olímpicos, serve, na verdade, para mostrar a forma como a atual prefeitura
encara o espaço urbano. Com que olhos ela vê a cidade. Creio que todo mundo
conhece a mecânica do jogo clássico: os jogadores circulam por um tabuleiro
onde as casas representam companhias de transporte de cargas e de passageiros e
bairros famosos do Rio e de São Paulo (pelo menos, na versão que eu joguei
durante a minha infância. Diz a Estrela, para se defender das acusações de estar
fazendo propaganda da atual Prefeitura, que já lançou mais de dez versões
diferentes do jogo). Os jogadores podem comprar essas casas e construir nelas
casas e hotéis. Os outros jogadores que “caem” em terrenos ou empresas com dono
devem pagar ao proprietário a taxa (no caso de empresa) ou o aluguel equivalente
aos imóveis que ele tem construídos lá. O objetivo do jogo é tornar-se o
jogador mais rico pela compra, venda ou aluguel de propriedades.
Na nova versão do jogo, as casas são bairros do Rio, pontos
turísticos tradicionais (como o Corcovado ou o Pão de Açúcar), empresas de
transporte (como o Metro e os BRTs), equipamentos esportivos que estão sendo
construídos ou reformados para os Jogos (como o Maracanã, o Parque Olímpico e a
Vila dos Atletas) e, até mesmo empresas municipais como a Companhia de Limpeza
Urbana (Comlurb) e a RioFilme. O jogo faz referência ainda a marcas criadas
pela atual prefeitura no seu processo de intervenção urbana visando os Jogos Olímpicos,
tais como: o Porto Maravilha, o Bairro Carioca, a Clinica da Família e o Museu
de Arte do Rio (Mar). Dessa forma, o objetivo dos jogadores passa a ser
enriquecer explorando esses equipamentos urbanos.
Dessa forma, o jogo que pretensamente enalteceria a cidade, na verdade naturaliza a visão da cidade como oportunidade de negócios (ou como um "balcão de negócios", como se referem os críticos do atual prefeito). Mas negócios feitos com equipamentos públicos, cuja função deixa de ser atender às necessidades dos cidadãos e passa a ser enriquecer os seus proprietários! O acesso à saúde e ao transporte, por exemplo (representados no jogo pelas Clínicas da Família e BRTs), se tornam investimentos privados. Igualmente grave, na minha opinião, é a utilização da mesma lógica de mercado em equipamentos culturais públicos (como a Riofilme e o Museu de Arte do Rio, que estão no tabuleiro da nova versão). Pois as ações da Prefeitura no campo cultural deveriam se guiar no propósito de formação de público, disseminação do conhecimento, de prover oportunidades de construção de um capital simbólico (o conceito é de Pierre Bourdieu) por parte dos cidadãos. E não pelo propósito de auferir lucros. Como explicou a arquiteta e professora da USP Raquel Rolnik no seu blog, o jogo explicita, banaliza e até transforma em algo positivo a vinculação das ações da Prefeitura do Rio com o processo de valorização imobiliária e mercantilização da cidade ora em curso. Expõe de forma lúdica, a lógica implícita em Parcerias
Público-Privadas celebradas pela atual administração municipal, onde as obras
públicas, feitas com dinheiro público, servem para dar lucro a investidores
privados. Em uma mistura do público com o privado que já virou tradição na
nossa sociedade.
A cidade como um balcão de negócios na representação genial de Rafucko
Segundo a Secretária Municipal de Educação, a administradora de empresas Claudia Costin, a distribuição do jogo nas escolas municipais se justifica pois ele pode ser utilizado de forma pedagógica, uma vez que disciplinas como geografia, história e matemática, além de temas transversais como a preservação cultural da cidade, poderiam ser trabalhados com os alunos (eu realmente gostaria de saber o que essa senhora entende sobre ensino de História para fazer uma afirmação como essa). Mas, a minha principal dúvida é qual o projeto pedagógico que embasa a utilização em sala de aula de um jogo com uma visão tão distorcida dos deveres do poder público para com o espaço urbano. Como escreveu a arquiteta Andréa Redondo em seu blog, o jogo é um produto do "duplipensar". Conceito criado pelo escritor George Orwell em sua obra-prima "1984", e definido como a capacidade de armazenar duas crenças contraditórias simultaneamente e aceitar ambas. Ou, citando outro exemplo do mesmo livro, é o modo de pensar
que permite a falsificação e alteração da realidade com o fim de torná-la, para
o indivíduo, aparentemente inalterável. É por meio do duplipensar que o gestor
da coisa pública “aplica um truque” na realidade mas, ao mesmo tempo, se
convence de que a realidade não está sendo violada. Dessa forma, o projeto pedagógico que embasa a utilização do jogo nas escolas municipais é o "Duplipensar". E o resultado esperado é fazer com que, desde novos, os cidadãos do Rio de Janeiro naturalizem a ideia de que espaço público é apenas mais um produto à venda.
Quem jogou Banco Imobiliário na infância, ou mesmo na
adolescência, com certeza lembra das famigeradas cartas de Sorte ou Revés e da
temida Prisão. Pois o Banco Imobiliário da Prefeitura do Rio consegue subverter
até a lógica da Sorte/Revés. Uma carta de revés, por exemplo, faz referência à
“Doação para projeto social”, que se transforma em algo negativo, pois o
jogador que a tira tem que se desfazer de $ 200.000. Por outro lado, o jogador também pode tirar a
sorte de seu o imóvel ser valorizado devido à “pacificação” da comunidade
vizinha. Então, ele recebe $ 75.000. Diante
de tanta coisa errada, fiquei curioso para saber qual a carta de Revés que te leva
para a prisão.