Acabei de ler recentemente dois livros sobre preservação do
patrimônio cultural escritos por advogados que atuam na área. E essa leitura me
passou a forte impressão de que essa área tem
deixado de ser um campo de atuação privilegiado de arquitetos, como até bem
recentemente se apresentava no Brasil, para se tornar um campo privilegiado de
atuação de advogados. Quero deixar claro desde já que não sou contra a atuação de advogados na área da preservação do patrimônio cultural. Muito pelo contrário! Creio que essa área necessita cada vez mais de advogados que entendam da legislação referente ao assunto e que saibam atuar a favor da preservação do patrimônio. Sim, para atuar a favor! Porque atuando contra já tem muita gente.
Desde
o estabelecimento das políticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil, o
instituto do tombamento se vê às voltas em disputas jurídicas. Principalmente
em conflito aberto com o direito de propriedade, uma vez que com o tombamento
surge a chamada limitação administrativa da propriedade privada dos bens
tutelados, como explicam Nilo Lima de Azevedo e Wilson Coury Jabour Júnior, no
seu livro Reflexões e Olhares, sobre
o estabelecimento da prática de preservação do patrimônio cultural em Juiz de Fora
(MG). É verdade que uma parcela da culpa do estabelecimento dessa situação de
conflito coube à forma autoritária como o então Serviço do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (SPHAN) conduzia os processos de tombamento nos primeiros
anos da sua atuação, guiado pela urgência requerida pela “retórica da perda”.
Os proprietários dos bens escolhidos para fazer parte do acervo do patrimônio
cultural nacional eram apenas informados que o seu imóvel havia sido tombado
pelo órgão e que, a partir de então, eles teriam que seguir uma série de
restrições. A primeira reação desses proprietários, para quem a tutela do IPHAN
feria o direito de propriedade sobre o seu bem, era instituir um advogado que
os auxiliasse a recuperar o direito que eles acreditavam que o órgão os estava
roubando. A ideia de que um bem particular podia exercer uma “função social”
era totalmente nova no Brasil e, por isso mesmo, muito mal compreendida pelos
proprietários. O SPHAN também não se
incomodou, nos seus primeiros anos de atuação, com ações de educação
patrimonial para esclarecer o que significava ser proprietário de um bem tombado.
Estabeleceu-se, por isso, uma espécie de diálogos de surdos, onde um interlocutor
não conseguia escutar as razões do outro.
Acontece que o transcorrer de oito décadas não foram
suficientes para alterar essa situação e garantir a prevalência da valorização
da dimensão social/coletiva de um imóvel sobre o paradigma liberal de
propriedade ainda muito forte no Brasil. Ou, cada vez mais forte, na medida
mesma em que a onda neoconservadora que nesse momento se espalha pelo país faz
com se dissemine cada vez mais a adoção do ideário econômico/político/social
liberal, onde o direito à propriedade privada reina absoluto como direito
fundamental. E hoje em dia, ainda ou cada vez mais, os proprietários de bens
que apresentem interesse cultural para preservação, principalmente os
localizados em áreas urbanas valorizadas pela especulação imobiliária, fogem da
possibilidade de tombamento da sua propriedade de todas as formas possíveis. E,
a mais utilizada delas, é a instituição de um advogado para garantir o seu
direito de propriedade. Por isso, volto a repetir, é muito importante que tenhamos
profissionais advogando a favor da causa do patrimônio.
Mais uma vez, eu repito e faço questão de deixar claro: não
sou contra a atuação de advogados no campo do patrimônio cultural. Muito pelo
contrário! Acredito mesmo que a análise do patrimônio cultural como objeto jurídico
é um campo de atuação muito fértil para advogados, como mostra o
recém-publicado livro de Yussef Daibert Salomão de Campos sobre a legislação em
torno do patrimônio cultural imaterial: A
Percepção do Intangível. Porém, um pedido de tombamento (ou de qualquer
outro tipo de preservação) deve ser aceito ou refutado por profissionais que
conheçam o significado do conceito de patrimônio cultural, que estejam a par da
história das práticas de preservação do patrimônio no Brasil e no mundo e de
toda a trajetória das discussões em torno do assunto, que saibam debater os
temas que hoje embasam e orientam essas práticas, tais como: a inadequação do uso
das ideias de excepcionalidade e autenticidade (consagradas, porém
ultrapassadas), a inclusão do conceito antropológico de cultura na atribuição
de valor dos bens, a não separação ou hierarquização dos bens pela sua natureza
(material ou imaterial), a importância da atribuição de valor ao bem pela
comunidade que o cerca, etc. O profissional que pretende trabalhar na área da proteção
do patrimônio cultural, ou mesmo aquele que pretende se colocar contra a proteção,
deve dominar esses temas. Pouco importando qual seja a sua formação. Porque senão,
estaremos sempre reproduzindo um diálogo de surdos.
Gostei muito do seu espaço e das suas reflexões. Certamente voltarei.
ResponderExcluirBeijos,
Roberta
Obrigado, Roberta.
ExcluirVolte sempre que desejar e sinta-se a vontade para flanar pelos posts.
Prezado Sérgio,
ResponderExcluirAgradeço a parte na qual há o elogio. Quero corrigi-lo em um ponto. Não sou advogado. Sou bacharel em Direito pela UFJF, especialista em gestão do Patrimônio Cultural (Granbery/Permear), mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural pela UFPel, e doutorando pela UFJF.
Logo, pode notar meu viés acadêmico.
Acredito que a leitura em torno do patrimônio e sobre o patrimônio deve ter sim uma visão especializada. Muitos apropriam-se, em seus ofícios, desse objeto transdisciplinar sem o conhecer. Mas não podemos ratificar a ótica meramente acadêmica. É preciso que a comunidade envolvida na preservação e/ou salvaguarda de um bem esteja envolvida nesses processos. Como ensina Aloísio Magalhães, o patrimônio não pode ser instituído simplesmente de cima para baixo!
Abraços,
Yussef Campos
Olá Yussef,
ResponderExcluirObrigado pelo comentário e pela correção. Espero não ter cometido mais nenhum deslize, principalmente no que se refere à utilização do jargão jurídico, uma vez que sou leigo na área.
Concordo plenamente contigo e mais ainda com Aloísio Magalhães. Se a nossa formação acadêmica deve servir para alguma coisa nessa área, deve ser para dialogar com a comunidade diretamente envolvida na preservação de um bem. E nunca para impor decisões a ela.
Volte sempre que desejar e sinta-se a vontade para flanar pelos outros posts. Pode ser que você encontre algo mais que te interesse.