Na semana passada, entre os dias 23
e 25, participei do III Seminário “Olhar sobre o que é nosso”, promovido pelo
Departamento de Patrimônio Cultural da Secretaria de Cultura (que por aqui se
chama Fundação Cultural Alfredo Ferreira Laje – FUNALFA) da Prefeitura de Juiz
de Fora. Como meus poucos, porém inteligentes, leitores já devem ter percebido,
o Seminário se propunha a discutir temas relacionados à preservação do
patrimônio cultural em geral, e do patrimônio de Juiz de Fora, em particular. O
tema dessa terceira edição versava sobre “As transformações da cidade e seus
bens integrados”.
Na programação do Seminário, o
primeiro dia teria três mesas dedicadas à discussão da intervenção em núcleos
históricos (que eu prefiro denominar, de uma forma mais geral, de núcleos
urbanos uma vez que, pela perspectiva do historiador todo núcleo urbano é
histórico). Todas as três inteiramente compostas por arquitetos. O que me
causou certa estranheza. Talvez por ter feito a minha especialização em
Patrimônio Cultural em um ambiente que tinha a multidisciplinaridade por
fundamento. Na minha turma do Programa de Especialização em Patrimônio do
IPHAN/UNESCO (segunda turma, 2006) tínhamos desde designers até jornalistas,
passando por antropólogos e, até mesmo, arquitetos! No PEP aprendi que patrimônio
cultural não é (ou não deve ser) uma área de atuação exclusiva de arquitetos, e
que a multiplicidade de olhares enriquece a preservação do patrimônio. Infelizmente,
esse entendimento ainda parece estar engatinhando no dia a dia da preservação
do patrimônio pelos municípios do Brasil afora. Os outros dois dias do
Seminário foram reservados a mesas sobre os tais “bens integrados”. No segundo
dia, duas palestras sobre arte tumular, e no último dia, duas palestras a
respeito de vitrais.
Como não é minha intenção aqui
fazer uma resenha do Seminário inteiro, gostaria de destacar nesse texto, entre
todas as palestras interessantes que assisti ao longo desses três dias, a
palestra inaugural do Seminário: “Intervenções em núcleos históricos”,
proferida pelo professor doutor Andrey Rosenthal Schlee, Diretor do
Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização do IPHAN. O professor Andrey
procurou ressaltar como as atuais intervenções realizadas pelo IPHAN em núcleos
históricos não se restringem ao tombamento e restauração de bens isolados,
fruto certamente do entendimento de que a preservação do patrimônio cultural
depende igualmente de uma delimitação e tratamento cuidadoso do seu entorno. Dessa
forma, tais intervenções buscam sempre, pela restauração e refuncionalização do
bem histórico/cultural, “requalificar” toda a região do seu entorno. Nesse
processo de criação de “áreas qualificadas” ao redor do bem tombado, há sempre
a preocupação de recuperar o simbolismo de marcos físicos que fazem parte da
história da constituição desse núcleos urbanos (em boa parte das vezes, mas nem
sempre, tais marcos são o próprio bem a ser preservado pelo IPHAN). Como, por
exemplo, a ligação da cidade com o seu porto, ou com a estação da via férrea que
foram os seus pontos de origem. É muito comum que a dinâmica de seu
desenvolvimento faça com que a cidade vire as costas para o seu “marco zero”, e
tais relações se percam. Criando ou recuperando áreas de convívio (como praças,
parques, deques, etc.), essas intervenções ressaltam a relação existente entre
a preservação do patrimônio cultural e a qualidade de vida dos morados desses núcleos
urbanos. Ao mesmo tempo, pela criação de áreas turísticas, a valorização da
memória local aparece também, através da intervenção para a preservação do
patrimônio cultural, como uma estratégia para o desenvolvimento local.
Em alguma medida, essa forma de
intervenção em núcleos urbanos se contrapõe ao argumento daqueles que negam o papel
do tombamento como instrumento para tratar de problemas urbanísticos relacionados
à qualidade de vida nas cidades, tais como o adensamento urbano ou a mobilidade
urbana. Esse tipo de intervenção mostra que, se por um lado, o tombamento não
trata diretamente desses problemas; por outro lado, ele pode se configurar como
ponto de partida para que eles sejam abordados e resolvidos. O que é importante
sempre ter em mente é que na medida mesma em que as políticas de preservação do
patrimônio cultural material atuam no espaço urbano, que é onde se encontram
esses bens (na esmagadora parte das vezes), elas tem necessariamente uma
dimensão de política urbanística, influenciando a dinâmica social do entorno
dos bens preservados e da cidade como um todo.
Infelizmente, no final da sua
palestra, o professor Andrey pisou na bola ao responder a uma pergunta do
público sobre a sua opinião a respeito das intervenções que atualmente vem
sendo feitas no Rio de Janeiro. O palestrante, então, elogiou o prefeito
Eduardo Paes como “um grande prefeito”, que está fazendo “obras memoráveis” na
cidade, comparando-o mesmo a Francisco Pereira Passos, prefeito que remodelou o
Rio no começo do século XX (essa comparação até faz algum sentido, mas não
pelos motivos que o palestrante ressaltou). Na mesma resposta, ainda reduziu as
críticas às obras promovidas pela Prefeitura à mera oposição política ao
prefeito. Como se essas críticas, mesmo quando vindas de pessoas envolvidas com
a preservação do patrimônio, obedecessem apenas a interesses do jogo político, totalmente
alheios à discussão do patrimônio cultural. O que, a meu ver, é uma forma muito
reducionista de se enxergar o que tem sido feito na cidade. Nenhuma palavra
sobre a privatização de espaços públicos, sobre as discutíveis parcerias
público-privadas onde o interesse privado sobressai ao interesse público, sobre
o desperdício de dinheiro público, sobre o desrespeito com áreas já tombadas e com
a própria história da cidade, etc. Depois de discorrer tanto, e tão bem, sobre
a relação existente entre a preservação do patrimônio cultural e a qualidade de
vida dos cidadãos, essa resposta do professor Andrey me deixou a impressão de
que para ele, ao fim e ao cabo, apenas o que conta na política de preservação
do patrimônio cultural são os critérios técnicos. Como se não houvesse muita disputa
política envolvida em qualquer intervenção em área urbana. Afinal de contas, o
termo “política” vem de “pólis”, não é? E, com “disputa política” não estou me
referindo aqui à práxis política rasteira que estamos acostumados a ver a nossa
classe política praticar diariamente. Estou me referindo à luta pelo direito a
um lugar no espaço urbano frente aos outros agentes que também atuam no mesmo
espaço. Em particular, uma luta contra a especulação imobiliária que, diga-se
de passagem tem um braço político bastante forte (e aqui sim, eu me refiro à
política rasteira, da troca de favores). Uma luta por visibilidade que, no seu
extremo, significa uma luta por cidadania. Porque, ao fim e ao cabo, é disso
que trata a preservação do patrimônio cultural.
O jornal Tribuna de Minas também publicou uma matéria sobre o Seminário, destacando outra palestra. Na verdade, a mesa redonda que aconteceu no primeiro dia: http://www.tribunademinas.com.br/cultura/peso-morto-1.1269660
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