Grandes polêmicas tem envolvido as obras que estão sendo
feitas para a Copa e as Olimpíadas no Rio de Janeiro (ou, pelo menos, que estão
sendo feitas com esse pretexto). Uma das mais discutidas nesse momento é a que diz
respeito ao processo de reforma e privatização do complexo desportivo do
Maracanã. O público em geral tem se dividido entre opositores e defensores da
privatização. Não vem ao caso discutir nesse texto se esses dois grupos
correspondem exatamente aos opositores e defensores dos governos de Sérgio
Cabral e Eduardo Paes. É uma discussão importante, mas na qual não pretendo
entrar aqui. Até porque esse texto já está grande demais sem ela. E, desde já,
me desculpo por isso.
Os argumentos dos opositores é de que a privatização do
Maracanã faz parte de um processo de elitização do espaço que começou nas
reformas do Estádio para o Pan-Americano com o fechamento da geral, o aumento
do preço dos ingressos, a construção de camarotes e a redução do número total
de lugares daquele que já foi o maior estádio do mundo. Tudo justificado como
exigências da FIFA para a modernização do Estádio. Sem querer negar a
existência desse processo de elitização, devo admitir que algumas dessas exigências
são até compreensíveis. Como é o caso da própria existência da Geral. Apesar de
muito romantizada e de fazer parte da história e de todo o folclore que envolve
os jogos no Maracanã, a Geral era um espaço que não garantia a segurança nem
dos torcedores que lá estavam e nem dos jogadores que estavam em campo. Mas, quando
foi construída, junto com o projeto original do Estádio, não havia as
preocupações com segurança que há hoje. O seu desaparecimento, porém, se tornou
símbolo desse processo de elitização do Maracanã. Que é, a meu ver, apenas mais
um capítulo do processo de elitização do lazer na cidade do Rio de Janeiro e da
cidade mesma como um todo, que vem marcando a administração do atual prefeito.
Reeleito com 70% dos votos dos cariocas, não custa lembrar. O que deve
significar que a maioria da população da cidade apoia esse processo de
elitização, não se importa com ele ou, o que é mais provável, não percebe o que
está acontecendo bem debaixo dos seus narizes.
Por outro lado, os argumentos daqueles que defendem a
privatização do estádio é de que aqueles que a criticam são esquerdistas radicais
contrários a qualquer privatização e inimigos do empresariado e da iniciativa
privada; ou que não é dever do Estado gerir estádios de futebol. Com a segunda
dessas afirmações eu concordo. A minha convicção é a de que o Estado deve
garantir à população contribuinte, em primeiro lugar, os serviços básicos:
saúde, educação, transporte e, também, lazer. E que, diante da eterna escassez
de verbas porque passam Estados e municípios no Brasil, me parece um
desperdício o Estado gastar uma parte da verba na manutenção de um Estádio do
porte do Maracanã. Os motivos dessa escassez é outra discussão importante, mas
que eu também não farei nesse texto. Não sei qual o total que o Estado gasta
anualmente para gerir o Maracanã, mas sei que essa verba poderia ser melhor empregada
em projetos esportivos que tenham um alcance e uma inclusão muito maior de
cidadãos. Assim sendo, não vejo problema algum que todos os estádios de futebol
do Brasil passem para a administração da iniciativa privada.
O Maraca nos áureos tempos de maior do mundo
PORÉM... e sempre há um porém, o Maracanã não é um estádio
qualquer. E, assim não sendo, requer cuidados especiais no seu processo de
privatização. Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que o Maracanã é um Patrimônio
Cultural, tombado em nível federal (pelo IPHAN) e em nível municipal (pela
Subprefeitura de Patrimônio Cultural da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro)
desde 2000. Não conheço as especificidades dos decretos de tombamento do
Estádio, mas sei que essa dupla proteção certamente impõe uma série de
restrições tanto ao seu uso quanto à alterações físicas no espaço construído.
Restrições essas que, diga-se de passagem, já não estão sendo respeitadas na
reforma pela qual passa atualmente o estádio. O fato é que, assim como acontece
com o proprietário de qualquer outro imóvel tombado, o proprietário do
Maracanã, seja o Estado ou seja um proprietário privado, não poderá (como já
não pode) dispor do espaço do Maracanã a seu bel prazer, fazendo e desfazendo
de acordo com o que lhe der na telha e desrespeitando a legislação que protege
o imóvel. Nesse sentido, qualquer processo de privatização do Maracanã deve
levar em consideração os projetos que o candidato a futuro proprietário tem
para o Estádio, tendo em visa a sua preservação como Patrimônio Cultural.
Estádio de Atletismo Célio de Barros
Em segundo lugar, é
importante ter em mente que o processo de privatização do Maracanã deverá levar
em consideração não apenas o Estádio, mas todo o Complexo Desportivo do
Maracanã. Que inclui a Pista de Atletismo Célio de Barros e o Parque Aquático
Júlio Delamare. Os dois espaços igualmente reformados para a realização do Pan Americano e utilizados para treinamento por centenas de atletas, inclusive
por medalhistas olímpicos. Espaços onde, além disso, moradores das comunidades
carentes das redondezas e um grande contingente de pessoas da terceira idade
podem praticar a atividade física fundamental para a manutenção da sua saúde
física e mental. Espaços públicos de lazer que contam com escolinhas de esportes
de várias modalidades, onde milhares de moradores do Rio de Janeiro tiveram a
oportunidade, assim como eu tive, de dar os seus primeiros passos na prática do
esporte. E creio que não é preciso ressaltar aqui o importante papel que a
prática de uma atividade esportiva tem na vida de uma criança ou de um
pré-adolescente, afastando-o do sedentarismo e de outras atividades que podem
ser nocivas à sua saúde. O processo de privatização do Maracanã que se
apresenta nesse momento pretende destruir esses importantes equipamentos
esportivos, deixando carente o enorme público hoje beneficiado por eles, pela
mais simples falta de alternativas para que esse público continue praticando o
seu trabalho ou seu lazer.
Parque Aquático Júlio Delamare
Anexos ao Complexo do Maracanã, e igualmente ameaçados pelo processo de privatização que se desenrola, enecontram-se também dois equipamentos culturais: uma escola municipal e um palacete que deveria ser um Museu, mas que estava abandonado pelo poder público há décadas. A Escola Municipal Freidenreich, que no momento mesmo em que escrevo esse texto já deve ter ido ao chão, era considerada a quarta melhor do Estado avaliação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) do Inep/ME. E, apesar do prefeito ter afirmado, em reportagem de O Globo de dezembro último, que "o que faz uma escola não é um prédio, mas a dedicação de professores e alunos", ele pode perguntar para qualquer pedagogo e todos lhe dirão
que o ambiente físico da escola é sim muito importante no processo de
ensino/aprendizagem. Experimente tentar implantar um ensino de excelência em
uma escola com instalações precárias. Claro que sempre há os professores que
fazem milagres com os poucos recursos que o Estado lhes dá, mas essas são as
exceções e não a regra. Infelizmente, o prefeito parece não compreender muito
de pedagogia. Mas, também, o que esperar de um prefeito que coloca uma
Administradora à frente da Secretaria Municipal de Educação?
A disputa em torno do Palacete construído ainda no século XIX, antiga propriedade de um comendador do Império, que resolveu construir a sua residência nas imediações do Palácio de São Cristóvão para ficar próximo ao Imperador, foi mais divulgada porque mais indignante. Consta que, ainda na década de 1860, o Palacete teria sido adquirido por Luis Augusto Maria Eudes, Duque de Saxe e genro de D. Pedro II, que doou o espaço à Monarquia para a construção de um centro de investigação da cultura indígena. Em 1910, o Marechal Rondon criou, no mesmo imóvel, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que viria a dar origen à FUNAI. Entre 1953 e 1977, funcionou ali o Museu do Índio, que nessa última data foi transferido para a sua localização atual no bairro de Botafogo (um local onde os índios são proibidos de entrar). A partir de então o Palacete centenário foi abandonado pelo
poder público a ponto de chegar quase às ruínas. Inclusive pelos órgãos de
preservação do patrimônio cultural, que nunca conseguiram chegar a um acordo
sobre se o imóvel merecia um tombamento ou não. Talvez por questões técnicas ou
de atribuição de valor histórico/artístico, talvez pelo próprio estado de
degradação em que se encontra o imóvel, ou mesmo por questões burocráticas. De
lá prá cá, vários projetos de ocupação do local foram aventados, mas nenhum foi
levado adiante. Lembro especialmente de um, mais recente, que era a compra do
espaço pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, cujo campus principal
fica instalado a poucos metros dali, para lá instalar a sua Faculdade de Artes.
Na época, início dos anos 2000, cheguei a ajudar uma amiga arquiteta no seu
projeto de reforma do Palacete para a instalação da Faculdade.
Infelizmente, esses projetos não saíram do papel e o imóvel
continuou abandonado, sendo ocupado por índios que reconheciam naquele espaço
um local significativo para a preservação da sua cultura. As autoridades só
voltaram a olhar para o local quando começou o processo de reforma/privatização
do Complexo do Maracanã, e a primeira orientação do governo do Estado não foi
reformá-lo e reabri-lo ao público, como Museu do Índio ou com outra função
qualquer, mas por o Palacete abaixo para a construção de um... estacionamento
(!!!). O mais incrível foi ler nas redes sociais pessoas apoiando a medida e afirmando
que o estacionamento iria beneficiar mais gente do que o Museu. Ao ler esse
tipo de comentário, fico me perguntando em que outro país do mundo as pessoas
acreditam que um estacionamento é mais necessário do que um Museu. É importante
ressaltar que é muito comum no Brasil a utilização dessa estratégia por parte
do Estado: deixar um imóvel indesejado ruir para poder destruí-lo com a aprovação
da opinião pública, que prefere ver um espaço vazio do que uma ruína e
entulhos. Resumindo a história, que foi por demais divulgada nos meios de
comunicação, depois de muitas manifestações contrárias à demolição do prédio, o
governador foi obrigado a recuar da sua intenção inicial e admitiu que o imóvel
ficasse no lugar onde está desde meados do século XIX. Porém, apenas o imóvel e
não os índios. Ele admitiu finalmente dar um uso de natureza cultural para o
espaço, como Museu, mas da Copa e não do Índio. No mês passado, a história teve
um desfecho autoritário, com a invasão do prédio pela Polícia Militar para a
retirada violenta dos seus moradores. O
Palacete, de construção anterior ao Maracanã ou mesmo ao Derby Club que existia
no local antes do Estádio, merecia ao menos o respeito e a preferência de quem
chegou primeiro, e conta a história não apenas da ocupação daquele pedaço da
cidade (o que já seria muita coisa), mas também a história dos esforços de
reconhecimento e preservação da cultura indígena no Brasil.
O Palacete é hoje o último marco da primitiva ocupação daquele espaço.
Por último, mas não menos importante, qualquer processo de privatização do Maracanã precisa levar em consideração o montante de dinheiro público que já foi gasto na atual reforma do Estádio. Segundo reportagem do Portal UOL, a reforma do Maracanã estava orçada, até fevereiro último, em cerca de R$ 1 bilhão!!!! Não estou informado se, de lá prá cá, já houve outro
reajuste do orçamento. Mas é bem provável que sim. Segundo a mesma reportagem,
de acordo com o edital de concessão do Complexo Desportivo, publicado naquele
mesmo mês pelo governo do Estado, a empresa vencedora terá a concessão do
estádio por 35 anos, sendo obrigada a repassar ao Estado R$ 4,5 milhões por ano ao
longo desse tempo. Fazendo uma complexa conta de somar, isso dá um total de R$
153 milhões. O que significa 15% do total que o poder público está gastando com
a reforma. Sim, você entendeu bem. A empresa vencedora vai ganhar o direito de
explorar o espaço do Maracanã (que não é qualquer espaço) por 35 anos, com a
obrigação de devolver ao Estado apenas 15% daquilo que ele gastou com a
reforma, e pagando em 35 prestações. Ao contrário do que boa parte dos
brasileiros acredita, dinheiro público não é dinheiro de ninguém. É o MEU
dinheiro, o SEU dinheiro! É o nosso dinheiro que o governo do Estado está
gastando nessa reforma, sem exigir o retorno do empresário que vai explorar o
espaço pelos próximos 35 anos.
Para concluir eu queria reafirmar o que eu disse no
começo desse texto: eu não sou contrário à privatização do Maracanã. Mas sou
contrário à privatização do nosso direito ao lazer e ao esporte, à educação e à
cultura. Sou contrário à privatização do espaço público e da cidade. E,
sobretudo, sou contrário à privatização do dinheiro que eu pago em impostos
todo santo dia. Por isso, sou contrário a este processo de privatização que ora
se apresenta para o Maracanã. Privatize-se o estádio, desde que se encontre um
interessado que se comprometa a respeitar, a história do estádio e da cidade,
respeitando-o como Patrimônio Cultural tombado que é; a preservar em
funcionamento os espaços públicos de lazer anexos a ele (Estádio de Atletismo
Célio de Barros e Parque Aquático Júlio Delamare); a preservar o prédio da
Escola Municipal Friedenreich e o Palacete-Museu, como importantes equipamentos
culturais que são (no caso da primeira) e que podem voltar a ser (no caso do
segundo); que se comprometa a devolver ao Estado, pelo menos, metade do que ele
tem gasto em dinheiro público nessa reforma. Ache um interessado que assuma esses compromissos e demonstre, com isso, respeito pela história da cidade e pela sua população e mostre para ele que, mesmo assim, ele ainda pode ganhar
muito dinheiro explorando o Maracanã por 35 anos. E, se isso não for possível que mantenha público o que sempre foi patrimônio público. Patrimônio não de um empresário particular, mas de todos os cariocas.
Outro projeto de reforma do complexo, que foi descartado, assumia a maioria desses compromissos. Como a manutenção dos equipamentos esportivos e culturais no entorno do estádio. Por que esse projeto foi abandonado? Pergunta sem respostas.
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