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segunda-feira, 8 de abril de 2013

O MARACANÃ E A CIDADE


Grandes polêmicas tem envolvido as obras que estão sendo feitas para a Copa e as Olimpíadas no Rio de Janeiro (ou, pelo menos, que estão sendo feitas com esse pretexto). Uma das mais discutidas nesse momento é a que diz respeito ao processo de reforma e privatização do complexo desportivo do Maracanã. O público em geral tem se dividido entre opositores e defensores da privatização. Não vem ao caso discutir nesse texto se esses dois grupos correspondem exatamente aos opositores e defensores dos governos de Sérgio Cabral e Eduardo Paes. É uma discussão importante, mas na qual não pretendo entrar aqui. Até porque esse texto já está grande demais sem ela. E, desde já, me desculpo por isso. 


Os argumentos dos opositores é de que a privatização do Maracanã faz parte de um processo de elitização do espaço que começou nas reformas do Estádio para o Pan-Americano com o fechamento da geral, o aumento do preço dos ingressos, a construção de camarotes e a redução do número total de lugares daquele que já foi o maior estádio do mundo. Tudo justificado como exigências da FIFA para a modernização do Estádio. Sem querer negar a existência desse processo de elitização, devo admitir que algumas dessas exigências são até compreensíveis. Como é o caso da própria existência da Geral. Apesar de muito romantizada e de fazer parte da história e de todo o folclore que envolve os jogos no Maracanã, a Geral era um espaço que não garantia a segurança nem dos torcedores que lá estavam e nem dos jogadores que estavam em campo. Mas, quando foi construída, junto com o projeto original do Estádio, não havia as preocupações com segurança que há hoje. O seu desaparecimento, porém, se tornou símbolo desse processo de elitização do Maracanã. Que é, a meu ver, apenas mais um capítulo do processo de elitização do lazer na cidade do Rio de Janeiro e da cidade mesma como um todo, que vem marcando a administração do atual prefeito. Reeleito com 70% dos votos dos cariocas, não custa lembrar. O que deve significar que a maioria da população da cidade apoia esse processo de elitização, não se importa com ele ou, o que é mais provável, não percebe o que está acontecendo bem debaixo dos seus narizes.

Por outro lado, os argumentos daqueles que defendem a privatização do estádio é de que aqueles que a criticam são esquerdistas radicais contrários a qualquer privatização e inimigos do empresariado e da iniciativa privada; ou que não é dever do Estado gerir estádios de futebol. Com a segunda dessas afirmações eu concordo. A minha convicção é a de que o Estado deve garantir à população contribuinte, em primeiro lugar, os serviços básicos: saúde, educação, transporte e, também, lazer. E que, diante da eterna escassez de verbas porque passam Estados e municípios no Brasil, me parece um desperdício o Estado gastar uma parte da verba na manutenção de um Estádio do porte do Maracanã. Os motivos dessa escassez é outra discussão importante, mas que eu também não farei nesse texto. Não sei qual o total que o Estado gasta anualmente para gerir o Maracanã, mas sei que essa verba poderia ser melhor empregada em projetos esportivos que tenham um alcance e uma inclusão muito maior de cidadãos. Assim sendo, não vejo problema algum que todos os estádios de futebol do Brasil passem para a administração da iniciativa privada.

O Maraca nos áureos tempos de maior do mundo

PORÉM... e sempre há um porém, o Maracanã não é um estádio qualquer. E, assim não sendo, requer cuidados especiais no seu processo de privatização. Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que o Maracanã é um Patrimônio Cultural, tombado em nível federal (pelo IPHAN) e em nível municipal (pela Subprefeitura de Patrimônio Cultural da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro) desde 2000. Não conheço as especificidades dos decretos de tombamento do Estádio, mas sei que essa dupla proteção certamente impõe uma série de restrições tanto ao seu uso quanto à alterações físicas no espaço construído. Restrições essas que, diga-se de passagem, já não estão sendo respeitadas na reforma pela qual passa atualmente o estádio. O fato é que, assim como acontece com o proprietário de qualquer outro imóvel tombado, o proprietário do Maracanã, seja o Estado ou seja um proprietário privado, não poderá (como já não pode) dispor do espaço do Maracanã a seu bel prazer, fazendo e desfazendo de acordo com o que lhe der na telha e desrespeitando a legislação que protege o imóvel. Nesse sentido, qualquer processo de privatização do Maracanã deve levar em consideração os projetos que o candidato a futuro proprietário tem para o Estádio, tendo em visa a sua preservação como Patrimônio Cultural.

Estádio de Atletismo Célio de Barros

Em segundo lugar, é importante ter em mente que o processo de privatização do Maracanã deverá levar em consideração não apenas o Estádio, mas todo o Complexo Desportivo do Maracanã. Que inclui a Pista de Atletismo Célio de Barros e o Parque Aquático Júlio Delamare. Os dois espaços igualmente reformados para a realização do Pan Americano e utilizados para treinamento por centenas de atletas, inclusive por medalhistas olímpicos. Espaços onde, além disso, moradores das comunidades carentes das redondezas e um grande contingente de pessoas da terceira idade podem praticar a atividade física fundamental para a manutenção da sua saúde física e mental. Espaços públicos de lazer que contam com escolinhas de esportes de várias modalidades, onde milhares de moradores do Rio de Janeiro tiveram a oportunidade, assim como eu tive, de dar os seus primeiros passos na prática do esporte. E creio que não é preciso ressaltar aqui o importante papel que a prática de uma atividade esportiva tem na vida de uma criança ou de um pré-adolescente, afastando-o do sedentarismo e de outras atividades que podem ser nocivas à sua saúde. O processo de privatização do Maracanã que se apresenta nesse momento pretende destruir esses importantes equipamentos esportivos, deixando carente o enorme público hoje beneficiado por eles, pela mais simples falta de alternativas para que esse público continue praticando o seu trabalho ou seu lazer.

Parque Aquático Júlio Delamare

Anexos ao Complexo do Maracanã, e igualmente ameaçados pelo processo de privatização que se desenrola, enecontram-se também dois equipamentos culturais: uma escola municipal e um palacete que deveria ser um Museu, mas que estava abandonado pelo poder público há décadas. A Escola Municipal Freidenreich, que no momento mesmo em que escrevo esse texto já deve ter ido ao chão, era considerada a quarta melhor do Estado avaliação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) do Inep/ME. E, apesar do prefeito ter afirmado, em reportagem de O Globo de dezembro último, que "o que faz uma escola não é um prédio, mas a dedicação de professores e alunos", ele pode perguntar para qualquer pedagogo e todos lhe dirão que o ambiente físico da escola é sim muito importante no processo de ensino/aprendizagem. Experimente tentar implantar um ensino de excelência em uma escola com instalações precárias. Claro que sempre há os professores que fazem milagres com os poucos recursos que o Estado lhes dá, mas essas são as exceções e não a regra. Infelizmente, o prefeito parece não compreender muito de pedagogia. Mas, também, o que esperar de um prefeito que coloca uma Administradora à frente da Secretaria Municipal de Educação? 


A disputa em torno do Palacete construído ainda no século XIX, antiga propriedade de um comendador do Império, que resolveu construir a sua residência nas imediações do Palácio de São Cristóvão para ficar próximo ao Imperador, foi mais divulgada porque mais indignante. Consta que, ainda na década de 1860, o Palacete teria sido adquirido por Luis Augusto Maria Eudes, Duque de Saxe e genro de D. Pedro II, que doou o espaço à Monarquia para a construção de um centro de investigação da cultura indígena. Em 1910, o Marechal Rondon criou, no mesmo imóvel, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), que viria a dar origen à FUNAI. Entre 1953 e 1977, funcionou ali o Museu do Índio, que nessa última data foi transferido para a sua localização atual no bairro de Botafogo (um local onde os índios são proibidos de entrar). A partir de então o Palacete centenário foi abandonado pelo poder público a ponto de chegar quase às ruínas. Inclusive pelos órgãos de preservação do patrimônio cultural, que nunca conseguiram chegar a um acordo sobre se o imóvel merecia um tombamento ou não. Talvez por questões técnicas ou de atribuição de valor histórico/artístico, talvez pelo próprio estado de degradação em que se encontra o imóvel, ou mesmo por questões burocráticas. De lá prá cá, vários projetos de ocupação do local foram aventados, mas nenhum foi levado adiante. Lembro especialmente de um, mais recente, que era a compra do espaço pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, cujo campus principal fica instalado a poucos metros dali, para lá instalar a sua Faculdade de Artes. Na época, início dos anos 2000, cheguei a ajudar uma amiga arquiteta no seu projeto de reforma do Palacete para a instalação da Faculdade.

Infelizmente, esses projetos não saíram do papel e o imóvel continuou abandonado, sendo ocupado por índios que reconheciam naquele espaço um local significativo para a preservação da sua cultura. As autoridades só voltaram a olhar para o local quando começou o processo de reforma/privatização do Complexo do Maracanã, e a primeira orientação do governo do Estado não foi reformá-lo e reabri-lo ao público, como Museu do Índio ou com outra função qualquer, mas por o Palacete abaixo para a construção de um... estacionamento (!!!). O mais incrível foi ler nas redes sociais pessoas apoiando a medida e afirmando que o estacionamento iria beneficiar mais gente do que o Museu. Ao ler esse tipo de comentário, fico me perguntando em que outro país do mundo as pessoas acreditam que um estacionamento é mais necessário do que um Museu. É importante ressaltar que é muito comum no Brasil a utilização dessa estratégia por parte do Estado: deixar um imóvel indesejado ruir para poder destruí-lo com a aprovação da opinião pública, que prefere ver um espaço vazio do que uma ruína e entulhos. Resumindo a história, que foi por demais divulgada nos meios de comunicação, depois de muitas manifestações contrárias à demolição do prédio, o governador foi obrigado a recuar da sua intenção inicial e admitiu que o imóvel ficasse no lugar onde está desde meados do século XIX. Porém, apenas o imóvel e não os índios. Ele admitiu finalmente dar um uso de natureza cultural para o espaço, como Museu, mas da Copa e não do Índio. No mês passado, a história teve um desfecho autoritário, com a invasão do prédio pela Polícia Militar para a retirada violenta dos seus moradores.  O Palacete, de construção anterior ao Maracanã ou mesmo ao Derby Club que existia no local antes do Estádio, merecia ao menos o respeito e a preferência de quem chegou primeiro, e conta a história não apenas da ocupação daquele pedaço da cidade (o que já seria muita coisa), mas também a história dos esforços de reconhecimento e preservação da cultura indígena no Brasil.



 O Palacete é hoje o último marco da primitiva ocupação daquele espaço.

Por último, mas não menos importante, qualquer processo de privatização do Maracanã precisa levar em consideração o montante de dinheiro público que já foi gasto na atual reforma do Estádio. Segundo reportagem do Portal UOL, a reforma do Maracanã estava orçada, até fevereiro último, em cerca de R$ 1 bilhão!!!! Não estou informado se, de lá prá cá, já houve outro reajuste do orçamento. Mas é bem provável que sim. Segundo a mesma reportagem, de acordo com o edital de concessão do Complexo Desportivo, publicado naquele mesmo mês pelo governo do Estado, a empresa vencedora terá a concessão do estádio por 35 anos, sendo obrigada a repassar ao Estado R$ 4,5 milhões por ano ao longo desse tempo. Fazendo uma complexa conta de somar, isso dá um total de R$ 153 milhões. O que significa 15% do total que o poder público está gastando com a reforma. Sim, você entendeu bem. A empresa vencedora vai ganhar o direito de explorar o espaço do Maracanã (que não é qualquer espaço) por 35 anos, com a obrigação de devolver ao Estado apenas 15% daquilo que ele gastou com a reforma, e pagando em 35 prestações. Ao contrário do que boa parte dos brasileiros acredita, dinheiro público não é dinheiro de ninguém. É o MEU dinheiro, o SEU dinheiro! É o nosso dinheiro que o governo do Estado está gastando nessa reforma, sem exigir o retorno do empresário que vai explorar o espaço pelos próximos 35 anos.

Para concluir eu queria reafirmar o que eu disse no começo desse texto: eu não sou contrário à privatização do Maracanã. Mas sou contrário à privatização do nosso direito ao lazer e ao esporte, à educação e à cultura. Sou contrário à privatização do espaço público e da cidade. E, sobretudo, sou contrário à privatização do dinheiro que eu pago em impostos todo santo dia. Por isso, sou contrário a este processo de privatização que ora se apresenta para o Maracanã. Privatize-se o estádio, desde que se encontre um interessado que se comprometa a respeitar, a história do estádio e da cidade, respeitando-o como Patrimônio Cultural tombado que é; a preservar em funcionamento os espaços públicos de lazer anexos a ele (Estádio de Atletismo Célio de Barros e Parque Aquático Júlio Delamare); a preservar o prédio da Escola Municipal Friedenreich e o Palacete-Museu, como importantes equipamentos culturais que são (no caso da primeira) e que podem voltar a ser (no caso do segundo); que se comprometa a devolver ao Estado, pelo menos, metade do que ele tem gasto em dinheiro público nessa reforma. Ache um interessado que assuma esses compromissos e demonstre, com isso, respeito pela história da cidade e pela sua população e mostre para ele que, mesmo assim, ele ainda pode ganhar muito dinheiro explorando o Maracanã por 35 anos. E, se isso não for possível que mantenha público o que sempre foi patrimônio público. Patrimônio não de um empresário particular, mas de todos os cariocas.

Um comentário:

  1. Outro projeto de reforma do complexo, que foi descartado, assumia a maioria desses compromissos. Como a manutenção dos equipamentos esportivos e culturais no entorno do estádio. Por que esse projeto foi abandonado? Pergunta sem respostas.

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