Algumas semanas atrás, no jornal
local da região onde moro, passou uma reportagem que mostrava como determinado
colégio daqui estava ensinando as crianças a serem melhores consumidores. A
estratégia pedagógica para isso foi a criação, nesse colégio, de uma moeda
fictícia com a qual alunos das primeiras séries do ensino fundamental podiam
comprar produtos em um comércio também fictício. Segundo professoras
entrevistadas, a intenção é ensinar às crianças o valor do dinheiro, assim como
fazê-las conhecer seus direitos como consumidores. Certamente, muitos pais veem
essa iniciativa da escola de seus filhos com muito bons olhos. Provavelmente,
alguns até mesmo consideram esse tipo de educação muito mais útil para os seus
filhos do que as matérias tradicionais como português, história ou geografia.
Eu, porém, considero esse tipo de iniciativa uma distorção preocupante daquilo
que deveria ser a função primordial da educação: formar cidadãos.
É com muita preocupação que eu
percebo que essas duas categorias, consumidor e cidadão, tem se confundido e
equiparado cada vez mais na cabeça de algumas pessoas. Fenômeno típico de uma
sociedade capitalista, onde a lógica de mercado se faz com que a primeira categoria
ganhe mais importância do que a segunda. Para essas pessoas, um consumidor consciente
dos seus direitos e deveres é também um cidadão consciente dos seus direitos e
deveres. Cunhou-se, inclusive, um termo que fundiu as duas categorias: o
consumidor-cidadão. Porém, essa relação não é verdadeira porque essas duas
categorias são muito distintas em sua essência. São distintas fundamentalmente,
porque a primeira, a de consumidor, é uma categoria eminentemente apolítica.
Enquanto a segunda, a de cidadão, é eminentemente política. O consumidor consciente
pode, perfeitamente, afirmar que “não gosta de política”, que “não discute
política”, que “não se envolve com política” e tantas outras frases parecidas
que vemos sendo repetidas cotidianamente por pessoas que, na maioria das vezes,
não percebe como a política afeta a sua vida. O cidadão consciente nunca pode
afirmar isso.
Os direitos e deveres do cidadão
vão muito além dos direitos e deveres do consumidor. Desde a Grécia Clássica,
onde o termo foi cunhado, “cidadão” é aquele indivíduo que está envolvido na
gestão da cidade. Da pólis. De onde vem o termo política. E o conceito de
cidadania remete ao exercício dos direitos políticos, que permitem ao indivíduo
intervir na direção dos negócios públicos do Estado, participando direta ou
indiretamente da sua gestão. O cidadão, portanto, é um indivíduo envolvido na
política. Ser cidadão, portanto, é envolver-se nos problemas da sua comunidade.
Na gestão da cidade. Muitas pessoas podem argumentar que a formação de
consumidores conscientes é o primeiro passo para a formação de cidadãos conscientes.
Só que, de consumidor para cidadão é preciso realizar um salto que o
individualismo crescente das sociedades capitalistas torna cada dia mais
difícil. O fato é que o consumidor se preocupa com questões eminentemente
individuais e só colateralmente (por assim dizer) coletivas. Ele está, em
primeiro lugar, buscando o seu interesse e só secundariamente o interesse de
outras pessoas que passam pelo mesmo problema. Porém, mesmo quando atinge o
nível coletivo, essas questões são pragmáticas e dizem respeito a uma
coletividade muito restrita. Como, por exemplo, quando um grupo de consumidores
é afetado por um serviço que deixa de ser prestado. Sanado o problema junto aos
órgãos de defesa do consumidor, essa coletividade se desfaz. Enquanto o cidadão
se ocupa de questões eminentemente coletivas. O que é, ao fim e ao cabo, a
essência mesma da sua natureza política. Ou seja, ele busca o interesse da
coletividade, e o seu apenas na medida em que está ele está incluído nessa
coletividade. Há aqui uma inversão radical de perspectiva entre uma e outra
posição, que alguns indivíduos podem até conseguir realizar, mas que não é uma
relação direta nem necessária.
A disseminação da ideia de que consumidor e
cidadão são a mesma coisa pode levar, no seu extremos, à formação de “cidadãos
apolíticos”. O que, por si só, é uma contradição em termos. Mas, vivemos em um
tempo de contradições, e essa é muito bem vista por políticos mal intencionados
que, assim, podem gerir a cidade como se fosse uma propriedade privada. Tendo
como objetivo da sua gestão não os resolver os problemas da coletividade, mas
auferir vantagens pessoais. Mascarando interesses particulares por trás de
intervenções urbanas que favorecem a ele mesmo e aos seus amigos e parentes
empreiteiros em vez da população da cidade. Esse fenômeno não é distante da
nossa realidade. Pode parecer ótimo que os prefeitos abram os cofres e executem
uma verdadeira avalanche de obras nos anos eleitorais, como o que estamos
agora. Mas, vamos parar um momento para pensar quem são os verdadeiros
beneficiados com essas obras. Quem elas realmente beneficiam? O pré-candidato a
prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Freixo, tem se referido nas suas
entrevistas a uma “cidadania do aplauso”. Onde o cidadão é um mero espectador. Que assiste, mas não toma parte na gestão da
cidade. Onde só resta ao cidadão aplaudir as iniciativas dos gestores da cidade,
reduzindo o já restrito papel que a nossa “Democracia” nos reserva. Esse é o
“cidadão apolítico”.
A equiparação entre consumidor e
cidadão tem outro efeito perverso para o qual é preciso chamar a atenção. É o
fato de que em um determinado modelo de sociedade capitalista o que define o
seu grau de cidadania é o seu poder de compra. Ou, dito de outra forma, você só
é considerado um cidadão de plenos direitos enquanto for também, ou
principalmente, um consumidor. O que exclui dos direitos mais básicos de
cidadania (vale dizer, o que exclui da cidade) aquela parcela de população que
não tem poder de compra. Assim sendo, uma sociedade onde consumidor e cidadãos
são a mesma coisa é uma sociedade excludente. Quero crer que as orientadoras
pedagógicas, diretoras e professoras daquela escola citada lá no início desse
texto não têm a intenção de perpetuar esse modelo de sociedade. Mas, então,
elas têm que parar de se preocupar em formar consumidores a voltar a se
preocupar em formar cidadãos.
Peço desculpas pelo tom didático. Mas o que era para ser apenas uma "nota mental" se transformou em um texto grande onde ainda ficaram de fora vários aspectos a serem comentados.
ResponderExcluirqueria lembrar o nome da moeda... era tão ridículo quanto a ideia. Lembra? Era alguma coisa amor... como se dinheiro tivesse alguma relação com amor! o.O
ResponderExcluirNão lembrava dessa referência ao amor no nome da moeda que eles criaram. Isso torna a situação ainda mais preocupante, né? Ensinando as crianças a associar sentimentos a dinheiro...
ExcluirSinceramente eu não vejo motivo algum para o teu pedido de desculpas, Sérgio. Eu estou cansada e creio que alguns de nós, meros mortais, também estão de ver as pessoas moldando as palavras e tentando usar o maldito tom "politicamente correto" que impulsiona o cidadão, cada vez mais, para as entrelinhas do que deveria ser a cidadania. Infelizmente na nossa sociedade os únicos cidadãos são aqueles que detêm o poder de deturpar a função social da cidade para alcançar objetivos individuais. Poder, esse, que, por sua vez, só é adquirido por via financeira.
ResponderExcluirAprendi a ver com grande desconfiança os discursos políticos durante o período de eleições, contudo, espero que o povo assimile algo do que o Marcelo Freixo anda discursando.
Quanto à educação, enquanto as melhorias nesta forem ponderadas por estatísticas meramente quantitativas continuaremos tendo que importar modelos de resolução para problemas que são nossos, já que nosso povo não é chamado e tampouco aprendeu a se ocupar disto.
O pedido de desculpas foi somente porque o texto ficou um tanto mais "pesado" de ler do que eu gostaria. Gosto de escrever textos sérios e reflexivos, porém "leves" para não cansar o leitor.
ExcluirAliás, as "entrelinhas da cidadania" (expressão sua) é um ótimo título para um texto, não é?
Boa! Legal tua preocupação em não cansar o leitor. Espero conseguir que meu trabalho também agrade ... ou ao menos que tenha leitores rsrs.
ResponderExcluirJuro que não achei o teu texto pesado. Ah! quanto à expressão, fico no aguardo do texto bacana que tu vais sob o título (haha). Sei que este nem é o espaço, mas obrigadão pela força com patrimônio!