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domingo, 3 de abril de 2011

FLANAR: VERBO INTRANSITIVO

Comecemos do início. Pelas definições: flanar é verbo que os dicionários de língua portuguesa não definem. Ou definem mal. “Andar ao acaso”, “Passear ociosamente”, segundo o Aurélio. Paulo Barreto (1881-1921), mais conhecido como João do Rio, o mais criticado e o menos lido dos cronistas da Belle Èpoque carioca, define o termo (que, ao fim e ao cabo, ele ajudou a disseminar) como “perambular com inteligência”. Escreveu ele na sua obra mais conhecida: “Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. (...) é estar sem fazer nada e achar absolutamente necessário ir até um sítio lôbrego, para deixar de lá ir, levado pela primeira impressão, por um dito que faz sorrir, um perfil que interessa, um par jovem cujo riso de amor causa inveja...” 
A flanerie, antes do futebol, era o esporte preferido do carioca do início do século XX. Momento em que a área central do Rio de Janeiro, como que por um passe de mágica (a expressão também é de Barreto) se transforma sob a batuta do Prefeito Francisco Pereira Passos (1903-1906). Momento em que o carioca deixa de ter vergonha e passa a ter orgulho do seu espaço urbano. Em que se populariza o hábito de “Fazer a Avenida”, como então se dizia. Que nada mais era do que perambular de uma ponta a outra da recém-inaugurada Avenida Central (Avenida Rio Branco desde 1912) ou sentar na varanda de um dos seus cafés, sempre com o intuito principal de ver e ser visto pela sociedade carioca.
Desde então, o carioca guarda uma relação especial de afetividade com o espaço urbano da sua cidade. Afetividade que, entenda-se bem, não significa cuidado.O carioca bate no peito com orgulho para dizer que é carioca, mas faz xixi nos monumentos históricos do centro (mas esse é tema para outro texto). Mesmo nos momentos mais negros da história da cidade e do país (sem querer confundir as duas), como talvez tenha sido a ditadura militar, o carioca nunca deixou de ocupar o espaço urbano. Fosse para se divertir, para protestar ou apenas de passagem de um lugar a outro. Muito antes que um conhecido prefeito lançasse um vasto plano de obras, que atingiu diversos bairros da cidade, com a justificativa de que queria “devolver o espaço urbano do Rio aos seus moradores”. Balela, nunca houve a necessidade de uma tal “devolução”. O carioca sempre se apropriou do espaço urbano da sua cidade. Para o bem e para o mal. A extensão relativamente pequena da área central da cidade sempre induziu o carioca a se deslocar pelos seus próprios pés. Mas não é apenas no centro da cidade que se anda. Extensa, a cidade é necessariamente “descentralizada”. Cada bairro tem o seu próprio centro, onde os moradores encontram opções de serviços, comércio e lazer. A área central dos bairros mais afastados do Centro (ou da Cidade, como ainda falam os moradores mais antigos) é tão movimentada quanto o Centro da cidade. Hábito que o colapso do sistema de transporte público ajudou a manter, diga-se de passagem. Mas aqui também já estou fugindo do tema e anunciando textos futuros.
Pode até parecer banal, mas essa relação de afetividade (como denominei), do carioca para com o espaço urbano do Rio de Janeiro não é algo facilmente encontrável em outras cidades do país. Morei durante um tempo em uma cidade onde não se andava a pé. Em certos bairros, as ruas nem calçadas tinham! Tudo se fazia de carro. E de carro apenas, porque o transporte público era inoperante, pra variar.  A falta de investimento publico em transporte de massa alimentava, e alimenta ainda, a opção pelo transporte particular na mesma medida em esta opção estimulava aquela falta de investimentos, num círculo vicioso. Qualquer pequena tarefa tinha que ser feita de carro. De todas as estranhezas que eu poderia ter com uma cultura diferente daquela onde fui criado, talvez essa tenha sido a maior de todas. Resultado: eu não tinha vontade nenhuma de freqüentar o seu espaço urbano. Mas, a meu favor, tenho que dizer que essa parecia ser também a opinião dos nativos locais.
Como ninguém andava a pé, exceto no centro da cidade, não se via nas ruas dos bairros orelhões ou mesmo bancas de jornal. Esse fenômeno tão urbano! Onde todas as manhãs aqueles que trabalham nas ruas se aglomeram para ler as manchetes do jornal pendurado do lado de fora. Aliás, essa reflexão me fez lembrar de uma época em que trabalhei relativamente perto de casa. Tinha que estar no trabalho as nove, e em vez de encarar um ônibus lotado logo pela manhã, optava por ir a pé para o trabalho. Creio que não há melhor maneira de se informar sobre os últimos acontecimentos. Ia pelo caminho pescando fragmentos de conversa e admito que, quando tinha tempo, também parava para ler as manchetes na banca de jornal. Chegava no trabalho já completamente informado “das últimas”. Algumas vezes ficava sabendo de acontecimentos antes mesmo da imprensa. Um acidente que havia acabado de ocorrer na saída do túnel, uma operação policial feita naquela mesma manhã em alguma “comunidade” próxima, etc. Nâo se pode dizer que eu flanava até o trabalho, afinal de contas eu tinha destino e horário. Mas, quem sabe, essa não é a flanerie desses tempos corridos? Afinal de contas, não temos mais o tempo de João do Rio. E essa frase pode ser interpretada de diversas maneiras...
Um professor e amigo sempre dizia: “Se quiser conhecer uma cidade, perca-se nela!”. Perder-se implica em andar pela cidade, entrar em seus becos mais escuros, nas vielas mais sujas, para ver apenas onde ela vai dar. E foi me perdendo pelo Rio que descobri diversas maneiras de chegar a um mesmo lugar, assim como quais lugares evitar. Acostumado com a prática, não é por acaso que procuro “me perder” em todas as cidades por onde passo. Nas minhas viagens, sempre separo um tempo para sair do roteiro turístico tradicional, pegar um ônibus, descer no centro da cidade e flanar. Aí sim, sem destino e sem horário. Será que estamos condenados hoje a flanar apenas na cidade dos outros? Dessa forma, os papéis se invertem, e passamos a conhecer mais do espaço urbano das cidades que visitamos do que da nossa própria cidade. Onde seremos eternos estrangeiros. Fazendo o mesmo caminho cotidianamente, da casa para o trabalho e do trabalho pra casa. Recuso-me! Andando pelo Rio descobri o meu amor não só por essa cidade. Mas o amor pela cidade. Pela vida urbana. Esse blog tem a pretensão de ser um espaço de reflexão de todos aqueles que, como eu, se recusam a ser estrangeiros na sua própria cidade. E se, com os meus textos, eu estimular alguém a por a cara na rua e flanar pela sua cidade, pago-me da tarefa com lucro.  

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