O brasileiro é apaixonado por
carros. A relação do brasileiro com automóveis é algo que vai além da
racionalidade. Obviamente, eu estou generalizando. É claro que existem pessoas
que não ligam a mínima para carros. E que, se pudessem usufruir de um sistema
de transporte coletivo decente, nunca sequer pensariam em comprar um. Eu mesmo
sou um desses. Mas, para uma boa parcela da nossa sociedade, o carro
deixou de ser apenas um meio de transporte, uma máquina que serve para te levar
de um ponto a outro, para se transformar em um fetiche, um objeto de desejo, um
sonho de consumo. Muitas vezes, o principal sonho de consumo. O sujeito pode
não fazer questão de ter casa própria, nem de um bom emprego, nem mesmo uma
família feliz e estruturada, mas faz questão de ter um carro. E não serve um
carro qualquer. Tem que ser um carro zero. Mesmo que para isso ele tenha que se
endividar durante 3 anos para pagar por esse sonho, uma vez que os preços
praticados pelas montadoras e revendoras de automóveis no Brasil são abusivos.
Uma rápida busca na internet comprova esse fato. Várias páginas no Facebook,
assim como canais no Youtube se dedicam a fazer a comparação de preços entre os
mesmos modelos de carros vendidos aqui no Brasil e em outros países. Deixo aqui
apenas dois exemplos:
Isso sem contar os outros gastos
que acompanham a compra de um carro e que não se resumem a abastecê-lo
regularmente para que ele possa continuar rodando: manutenções periódicas,
IPVA, seguro obrigatório, etc. A manutenção de um carro pode vir a consumir por
volta de R$ 5.000 anuais. Isso se você não tiver o azar de sofrer uma batida ou
levar uma multa. A paixão por carros, portanto, é uma paixão cara. E,
obviamente, não tem nada de racional. Como qualquer paixão.
Apesar disso, não é difícil de
entender de onde vem essa paixão. Desde pequenos, principalmente se você for
menino, somos estimulados pelos nossos pais a nos interessarmos por carros.
Afinal de contas, depois da bola, qual o segundo brinquedo mais dado aos
meninos? Carrinhos, claro! Como se mulheres também não pudessem se interessar
por carros. Eu já conheci pelo menos uma que era tão fanática por carros, a
ponto de discutir sobre modelos, preços e desempenho com qualquer marmanjo. E
outra cuja paixão a levou a fazer curso técnico de mecânica de automóveis. Mas,
vamos deixar de lado por enquanto todo o conteúdo machista que é jogado em cima
dessa relação. Durante toda a infância e adolescência, essa relação do menino
com o carro é estimulada. De forma que, ao completar seus 18 aninhos de vida, o
sonho de boa parte dos adolescentes do sexo masculino (e de algumas do sexo
feminino também) é tirar sua carteira de motorista e comprar (ou ganhar) o seu
primeiro carro. Possuir um carro, então, é associado à maioridade, à independência,
a uma nova fase da vida.
E o principal responsável pela
manutenção dessa paixão é a propaganda de carros, cujo maior interesse é,
obviamente, vender carros. E todos já estamos cansados de saber que, para
atingir esse objetivo, o marketing há muito deixou de recorrer à exposição das
qualidades do produto para apelar para o lado emocional do público. Foi a
propaganda de automóveis que criou expressões tais como a frase com a qual eu
iniciei esse texto. E várias outras que expressam essa paixão de brasileiros
por carros. O negócio funciona como um círculo vicioso: a propaganda estimula o
interesse do público por carros apelando para o emocional, vendendo não
produtos, mas estilos de vida, símbolos de status e poder; e esse interesse,
por sua vez, inspira a criação de propagandas que o exploram e o estimulam ainda
mais. Assim, montadoras e revendedoras podem afirmar que estão apenas atendendo
a uma demanda que vem do público, mas que, ao fim e ao cabo, elas mesmas
criaram. Estratégia facilmente reconhecível por qualquer pessoa que tenha dois
neurônios funcionais e o hábito de analisar atenta e racionalmente aquilo que
vê.
Vejam o exemplo da propaganda da Renault, que afirma que um carro da marca é vendido a cada três minutos no
Brasil. Essa propaganda, na minha
opinião, seria um verdadeiro “tiro no pé” se os compradores raciocinassem pelo
menos um pouco antes de comprar. Ela mostra os carros invadindo as casas e os
ambientes de trabalho das pessoas (sua vida, em suma) sem sequer terem sido
solicitados. Ela sugere que aqueles carros foram comprados por alguém. Mas por
quem, uma vez que as pessoas parecem surpresas de vê-los aparecendo do nada? Sorte
das montadoras e revendedoras que o comprador raramente raciocina, e compra por
impulso. A função da propaganda é justamente evitar que ele se pergunte se
realmente precisa do produto e implantar essa certeza no seu subconsciente.
E quando a propaganda, no afã de estimular esse interesse e
explorar essa paixão, se torna irresponsável? E quando ela estimula o que há de
pior nos hábitos dos motoristas brasileiros? A imprudência. Talvez a principal
causa de acidentes automotivos no Brasil hoje. Calma! Até o presente momento nenhuma
propaganda de carros estimulou os motoristas a ultrapassar o sinal vermelho, ou
a andar sem cinto de segurança. Nenhuma propaganda que eu tenha visto, pelo
menos. Mas eu vi, recentemente, uma propaganda da Toyota que estimulava o motorista a
correr. E isso não é menos perigoso. A referência não é nada sutil. E pretende ressaltar
uma das “qualidades” do carro (a sua “performance”). Mas, ao mesmo tempo, cumprindo
a sua função de falar ao emocional do comprador, sugere o potencial de aventura
e emoção que ele estará adquirindo ao comprar o carro. E, analisada racionalmente
e não emocionalmente, estimulando a pressa, a velocidade e a forma imprudente
e, eu diria até incivilizada, com que muitos motoristas se comportam no
transito.
Para muitos, essa rápida análise de algumas propagandas de
automóveis pode parecer exagerada. Afinal, segundo essas pessoas, a propaganda
não tem tanta influencia assim sobre atitude das pessoas. Não é a propaganda
que estimula as pessoas a comprarem carros e sim a sua real necessidade de um
meio de transporte eficiente. E ela também não pode ser culpada pela forma
irresponsável como muitos motoristas agem no trânsito. Em certa medida, sou
tentado a concordar com duas das três proposições acima. As propagandas de
carro não podem ser totalmente responsabilizadas pelo transito caótico que
enfrentamos diariamente. Mas elas tem um papel nada desprezível nesse cenário.
Elas vendem os carros. E os vendem como a melhor solução, quiça a única, para
os nossos problemas de locomoção. Elas apostam na opção rodoviarista e
individualista e a estimulam. Todo o resto é consequência disso.
Carros... tai! Conheço esse fetiche de perto. Mas enfim, na negociação do poder que vem com o carro é realmente bem difícil definir se "tostines é fresquinho pq vende mais ou vende mais pq é mais fresquinho". Agora, os labs do comportamento do consumidor estão aí pra cuidar das "auto-ilusões" dos caras... afinal, qual a lógica entre comprar um carro com "performance" e "andar na linha"? Acho que o lance ronda mesmo o tic-tac (ou o tico-teco?) de conseguir (co) relacionar elementos como o maior conforto dos carros com o fato de que o (in) feliz vai passar muito mais tempo no trânsito... brigando com tantos outros (in) felizes com seus carros... o mkt é sinistro, feito por pessoas sinistras, para pessoas não tão sinistras assim...Sinistro!
ResponderExcluirEdnez,
ExcluirNa minha humilde opinião fecal, esse pseudo-dilema do Tostines é mais uma invenção da mídia para naturalizar uma necessidade criada. A respeito dessa questão sobre o conforto, porque o sujeito vai passar muito tempo no transito eu já escrevi uma pequena nota mental, a partir também de uma propaganda de carro que vi na internet. Confere aí: http://sergiobarraflanando.blogspot.com.br/2012/08/notas-mentais.html
Hummm Tienes razón, pero no toda, já que as necessidades de fato existem (embora não nos termos que o mkt coloca). Tanto que os laboratórios do comportamento do consumidor vivem de descobri-las e massificá-las (ou seria homogeneizá-las?). Muito boa tua nota. Ainda não tinha lido. :)
ResponderExcluirAs necessidades, de fato, existem. Foi a objeção que eu mesmo fiz ao meu texto no último parágrafo. Mas o marketing manipula sinistramente essa necessidade, gerando mais necessidade e propondo pseudo-soluções que, na verdade não resolvem o problema. Por exemplo, a solução para a ausência de um transporte público de qualidade não é a compra de um carro e sim a luta por transporte público de qualidade. Mas é como você disse: o marketing é sinistro, feito por pessoas sinistras, para pessoas menos sinistras.
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