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quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

PAIXÃO E PROPAGANDA


O brasileiro é apaixonado por carros. A relação do brasileiro com automóveis é algo que vai além da racionalidade. Obviamente, eu estou generalizando. É claro que existem pessoas que não ligam a mínima para carros. E que, se pudessem usufruir de um sistema de transporte coletivo decente, nunca sequer pensariam em comprar um. Eu mesmo sou um desses. Mas, para uma boa parcela da nossa sociedade, o carro deixou de ser apenas um meio de transporte, uma máquina que serve para te levar de um ponto a outro, para se transformar em um fetiche, um objeto de desejo, um sonho de consumo. Muitas vezes, o principal sonho de consumo. O sujeito pode não fazer questão de ter casa própria, nem de um bom emprego, nem mesmo uma família feliz e estruturada, mas faz questão de ter um carro. E não serve um carro qualquer. Tem que ser um carro zero. Mesmo que para isso ele tenha que se endividar durante 3 anos para pagar por esse sonho, uma vez que os preços praticados pelas montadoras e revendoras de automóveis no Brasil são abusivos. Uma rápida busca na internet comprova esse fato. Várias páginas no Facebook, assim como canais no Youtube se dedicam a fazer a comparação de preços entre os mesmos modelos de carros vendidos aqui no Brasil e em outros países. Deixo aqui apenas dois exemplos:
Isso sem contar os outros gastos que acompanham a compra de um carro e que não se resumem a abastecê-lo regularmente para que ele possa continuar rodando: manutenções periódicas, IPVA, seguro obrigatório, etc. A manutenção de um carro pode vir a consumir por volta de R$ 5.000 anuais. Isso se você não tiver o azar de sofrer uma batida ou levar uma multa. A paixão por carros, portanto, é uma paixão cara. E, obviamente, não tem nada de racional. Como qualquer paixão.
Apesar disso, não é difícil de entender de onde vem essa paixão. Desde pequenos, principalmente se você for menino, somos estimulados pelos nossos pais a nos interessarmos por carros. Afinal de contas, depois da bola, qual o segundo brinquedo mais dado aos meninos? Carrinhos, claro! Como se mulheres também não pudessem se interessar por carros. Eu já conheci pelo menos uma que era tão fanática por carros, a ponto de discutir sobre modelos, preços e desempenho com qualquer marmanjo. E outra cuja paixão a levou a fazer curso técnico de mecânica de automóveis. Mas, vamos deixar de lado por enquanto todo o conteúdo machista que é jogado em cima dessa relação. Durante toda a infância e adolescência, essa relação do menino com o carro é estimulada. De forma que, ao completar seus 18 aninhos de vida, o sonho de boa parte dos adolescentes do sexo masculino (e de algumas do sexo feminino também) é tirar sua carteira de motorista e comprar (ou ganhar) o seu primeiro carro. Possuir um carro, então, é associado à maioridade, à independência, a uma nova fase da vida.
E o principal responsável pela manutenção dessa paixão é a propaganda de carros, cujo maior interesse é, obviamente, vender carros. E todos já estamos cansados de saber que, para atingir esse objetivo, o marketing há muito deixou de recorrer à exposição das qualidades do produto para apelar para o lado emocional do público. Foi a propaganda de automóveis que criou expressões tais como a frase com a qual eu iniciei esse texto. E várias outras que expressam essa paixão de brasileiros por carros. O negócio funciona como um círculo vicioso: a propaganda estimula o interesse do público por carros apelando para o emocional, vendendo não produtos, mas estilos de vida, símbolos de status e poder; e esse interesse, por sua vez, inspira a criação de propagandas que o exploram e o estimulam ainda mais. Assim, montadoras e revendedoras podem afirmar que estão apenas atendendo a uma demanda que vem do público, mas que, ao fim e ao cabo, elas mesmas criaram. Estratégia facilmente reconhecível por qualquer pessoa que tenha dois neurônios funcionais e o hábito de analisar atenta e racionalmente aquilo que vê.
Vejam o exemplo da propaganda da Renault, que afirma que um carro da marca é vendido a cada três minutos no Brasil. Essa propaganda, na minha opinião, seria um verdadeiro “tiro no pé” se os compradores raciocinassem pelo menos um pouco antes de comprar. Ela mostra os carros invadindo as casas e os ambientes de trabalho das pessoas (sua vida, em suma) sem sequer terem sido solicitados. Ela sugere que aqueles carros foram comprados por alguém. Mas por quem, uma vez que as pessoas parecem surpresas de vê-los aparecendo do nada? Sorte das montadoras e revendedoras que o comprador raramente raciocina, e compra por impulso. A função da propaganda é justamente evitar que ele se pergunte se realmente precisa do produto e implantar essa certeza no seu subconsciente.
E quando a propaganda, no afã de estimular esse interesse e explorar essa paixão, se torna irresponsável? E quando ela estimula o que há de pior nos hábitos dos motoristas brasileiros? A imprudência. Talvez a principal causa de acidentes automotivos no Brasil hoje. Calma! Até o presente momento nenhuma propaganda de carros estimulou os motoristas a ultrapassar o sinal vermelho, ou a andar sem cinto de segurança. Nenhuma propaganda que eu tenha visto, pelo menos. Mas eu vi, recentemente, uma propaganda da Toyota que estimulava o motorista a correr. E isso não é menos perigoso. A referência não é nada sutil. E pretende ressaltar uma das “qualidades” do carro (a sua “performance”). Mas, ao mesmo tempo, cumprindo a sua função de falar ao emocional do comprador, sugere o potencial de aventura e emoção que ele estará adquirindo ao comprar o carro. E, analisada racionalmente e não emocionalmente, estimulando a pressa, a velocidade e a forma imprudente e, eu diria até incivilizada, com que muitos motoristas se comportam no transito.
Para muitos, essa rápida análise de algumas propagandas de automóveis pode parecer exagerada. Afinal, segundo essas pessoas, a propaganda não tem tanta influencia assim sobre atitude das pessoas. Não é a propaganda que estimula as pessoas a comprarem carros e sim a sua real necessidade de um meio de transporte eficiente. E ela também não pode ser culpada pela forma irresponsável como muitos motoristas agem no trânsito. Em certa medida, sou tentado a concordar com duas das três proposições acima. As propagandas de carro não podem ser totalmente responsabilizadas pelo transito caótico que enfrentamos diariamente. Mas elas tem um papel nada desprezível nesse cenário. Elas vendem os carros. E os vendem como a melhor solução, quiça a única, para os nossos problemas de locomoção. Elas apostam na opção rodoviarista e individualista e a estimulam. Todo o resto é consequência disso.

4 comentários:

  1. Carros... tai! Conheço esse fetiche de perto. Mas enfim, na negociação do poder que vem com o carro é realmente bem difícil definir se "tostines é fresquinho pq vende mais ou vende mais pq é mais fresquinho". Agora, os labs do comportamento do consumidor estão aí pra cuidar das "auto-ilusões" dos caras... afinal, qual a lógica entre comprar um carro com "performance" e "andar na linha"? Acho que o lance ronda mesmo o tic-tac (ou o tico-teco?) de conseguir (co) relacionar elementos como o maior conforto dos carros com o fato de que o (in) feliz vai passar muito mais tempo no trânsito... brigando com tantos outros (in) felizes com seus carros... o mkt é sinistro, feito por pessoas sinistras, para pessoas não tão sinistras assim...Sinistro!

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    1. Ednez,

      Na minha humilde opinião fecal, esse pseudo-dilema do Tostines é mais uma invenção da mídia para naturalizar uma necessidade criada. A respeito dessa questão sobre o conforto, porque o sujeito vai passar muito tempo no transito eu já escrevi uma pequena nota mental, a partir também de uma propaganda de carro que vi na internet. Confere aí: http://sergiobarraflanando.blogspot.com.br/2012/08/notas-mentais.html

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  2. Hummm Tienes razón, pero no toda, já que as necessidades de fato existem (embora não nos termos que o mkt coloca). Tanto que os laboratórios do comportamento do consumidor vivem de descobri-las e massificá-las (ou seria homogeneizá-las?). Muito boa tua nota. Ainda não tinha lido. :)

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    1. As necessidades, de fato, existem. Foi a objeção que eu mesmo fiz ao meu texto no último parágrafo. Mas o marketing manipula sinistramente essa necessidade, gerando mais necessidade e propondo pseudo-soluções que, na verdade não resolvem o problema. Por exemplo, a solução para a ausência de um transporte público de qualidade não é a compra de um carro e sim a luta por transporte público de qualidade. Mas é como você disse: o marketing é sinistro, feito por pessoas sinistras, para pessoas menos sinistras.

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