Não gosto de ver blogs abandonados. Me dá uma impressão muito ruim. Parece aquelas casas que um dia foram habitadas por famílias numerosas, formadas por pais, filhos, netos, sobrinhos, cachorros... que a enchiam de barulho e vida durante todo o dia, e que aos poucos foram se esvaziando. Os filhos e netos cresceram e mudaram para as suas próprias casas, os avós faleceram, e os pais resolveram mudar para uma casa menor. E agora ela está lá, vazia e silenciosa. Como esse blog...
O problema é que estou em fim de doutorado e passo dias e noites escrevendo tese. Ler e escrever é tudo que faço hoje em dia. No meu tempo livre, a última coisa que penso em fazer é continuar escrevendo. Mesmo que sejam crônicas. Então, para esse blog não ficar completamente abandonado, até eu terminar a tese vou publicar algumas crônicas antigas. Escritas em uma época em que eu ainda escrevia por prazer e não por obrigação. Algumas já devem estar fazendo quase uma década. Pois escrevi quando estava terminando a graduação. Talvez, relendo-as, eu possa recuperar o prazer de escrever ao sentir de novo o clima de uma época mais leve e mais romântica... talvez vocês (se alguém ainda me lê) sintam o mesmo.
Vou começar com uma que, naqueles dias, era meu cartão de visitas. Eu gosto muito dela e foi bastante lida entre os amigos mais chegados.
MÉNAGE À TROIS
Quando o sol aparece no Rio de Janeiro, o primeiro
impulso do carioca é correr para a rua. Então, mais do que em qualquer outra
situação, a já notória beleza da Cidade se torna comparável a uma obra de arte.
Difícil mesmo é ficar entre quatro paredes após contemplar, como se fosse um
quadro emoldurado pelas esquadrias da janela, a beleza do azul infinito do céu
e do verde vivo da vegetação nos morros da Cidade (nos morros que ainda têm
alguma vegetação), iluminados pelo brilho do sol.
Tal impulso não é fruto, em hipótese alguma, da raridade do fenômeno.
Leviano seria comparar o Rio de Janeiro à Londres, onde à mais leve visão de um
baço raio de sol, correm todos às praças e parques para saudar a visita ilustre
e bissexta. Aqui o sol não é visita. Ao aproximar-se o final do ano ele vem
para ficar. E só vai embora no ano seguinte. Mas não por isso sua chegada é
saudada aqui com menos entusiasmo do que na Inglaterra. É como uma pessoa
querida, de quem os mais breves minutos de ausência deixam uma saudade
profunda. Corremos, então, para a rua para abraçá-lo como correríamos para
abraçar essa pessoa.
O carioca precisa fazer fotossíntese, já disse alguém. Sentir na pele o
calor, nem sempre aconchegante, do sol. Sem ver nisso nenhum fim prático que não
a própria experiência sensória. Bronzear-se? Sim, cariocas gostam disso. Mas
reduzir a esse fim, por demais pragmático, a sua relação com o sol é, no
mínimo, falta de imaginação. Lagartear é o termo. Não sei quem o cunhou mas, se
não me engano, foi criado em Campinas (essa sim, comparável à Londres), ainda
na época da faculdade, quando as noites gélidas eram quase sempre recompensadas
por dias de sol. Um sol, a princípio tímido pela manhã, mas que se tornava
quase tórrido após o almoço. Lagartear era, então, o esporte favorito. Fazer
amor com o sol na grama. Por horas, deitados os dois a contemplar o céu. Os
cariocas têm necessidade de sol, como de sexo.
Mas, essa relação do carioca com o sol está longe de ser uma relação
egoísta. Ela comporta, e mesmo pede, um terceiro elemento: A Cidade. Cariocas
têm a Cidade como o principal vetor de expressão das suas experiências
sensórias. Ver a Cidade é, com certeza, a sua experiência preferida. Mas
também, ouvir seus sons e seus silêncios; sentir seus cheiros,
variados, múltiplos; tocá-la com os pés (ah, os pés... esse órgão do
tato por excelência), vendo-a correr (ou mesmo passar devagarinho, o que é
muito melhor) por baixo dos nossos pés. E, da mesma forma, que a Cidade é
fundamental para a experiência sensória do sol, este é fundamental para as
experiências sensórias daquela. Com ele, o Rio se torna mais desfrutável.
Cidade mulher? Mais que isso, cidade prostituta. Com seu corpo a dar prazer a
outrem. O carioca é amante de sua cidade.
Por isso corremos para a rua. Correr para a praia? Não necessariamente. A
praia é, com certeza, o destino considerado em primeiro lugar pelos cariocas,
quando do chamado do sol. Ponto de convergência. A maior e mais democrática
área de lazer da cidade. Lugar comum, porém. A praia e a frase. E como
não me atraem os lugares-comuns, prefiro correr para os morros. Certa vez já
expressei essa minha preferência afirmando que a natureza, para mim, é mais
verde que azul. Ignorava, então, que os morros não são só verdes. Mas também
azuis, pois estão dentro do céu. Assim como as praias não são só azuis, porque
o mar é verde também. Digressiono.
Pródiga em praias, a Cidade é também pródiga em morros. Mas um, em
particular, comprou camarote cativo no meu coração e de lá assiste ao desfile
vida afora das minhas sentimentalidades. Por isso, quando me ouvires falar em
correr para os morros, entenda correr para Santa Teresa. Quando saio para andar
sem rumo pela cidade, esteja onde estiver, é para lá que as minhas pernas me
levam, sem nem mesmo esperar uma ordem minha. Cavalos ensinados sabem para onde
levar o coche.
Subo, então, suas ladeiras sinuosas, me deixando enganar por suas curvas,
como tantas vezes já me deixei enganar por outras mais perigosas. Os sons da
Cidade ficam para trás e o silêncio do caminho é interrompido somente por um ou
outro carro que me ultrapassa apressadamente descendo ou subindo, e pela música
que me acompanha. Com os olhos no horizonte acima de mim, vejo o reflexo do sol
nos trilhos do bonde. E sinto a vida retornar ao seu ritmo certo, que é o ritmo
lento e cadenciado da subida de uma ladeira, e não a correria cotidianamente
praticada ao nível do mar. Um ritmo que permite a reflexão sobre a vida, e não
que vivamos apenas, e que cheguemos ao fim do caminho ainda com fôlego. Permito-me,
por vezes, pegar um atalho por uma de suas muitas escadas, apesar de não
apreciá-las. As escadas, além de encurtar o caminho, exigem um esforço muito
maior do que as ladeiras para serem galgadas. E, ao contrário das ladeiras, as
escadas guardam um quê de objetividade pouco lírica. Elas têm um fim (em todos
os sentidos) e te levam direto a ele. Ao contrário das ladeiras que, infinitas,
são capazes de te levar onde você menos espera, a lugar algum, ou de volta ao
ponto de partida.
Lá de cima, juntinho do azul infinito do céu e do verde vivo da
vegetação, me distraio a contemplar a cidade. Vista daqui do alto, ela é ainda
mais linda, minha amante. Faço, na verdade, como fazem todos os apaixonados.
Quem nunca se afastou sorrateiramente da sua amada para contemplá-la em
silêncio, de longe? Como que a tentar apreender de uma só vez, num só olhar,
toda a sua beleza. É impossível, eu sei. É beleza demais para ser guardada em
olhos humanos por mais que breves minutos. Mas não há pecado em querer o
impossível. E quem assim procede pode até ser digno de pena, mas nunca de
perdão.
E assim a tarde passa. Não uma tarde vazia, mas uma tarde de ócio. O que
não são sinônimos, ao contrário do que podem pensar as mentes rasas. O ócio é o
pré-requisito dos melhores verbos terminados em “ar” que se pode conjugar:
filosofar, criar, amar... Não há poesia sem o ócio. E não há amor sem poesia. E
no ócio ficamos até anoitecer, fazendo amor e poesia, os três: eu, o sol e a
Cidade.
Outubro de 2003
Linda crônica... me fez lembrar a exata sensação que senti a única vez que subi Santa Teresa. Em especial a frase "E sinto a vida retornar ao seu ritmo certo, que é o ritmo lento e cadenciado da subida de uma ladeira, e não a correria cotidianamente praticada ao nível do mar." Entre outras frases e outras sensações. Que venham mais crônicas antigas e as novas depois delas!:)
ResponderExcluirObrigado, Lara, pelo seu comentário. O primeiro do blog! Fico feliz que tenha gostado da crônica.
ExcluirMas, como assim só subiu para Santa Teresa uma vez? Faça isso mais vezes! Faça toda semana! Na época em que escrevi essa crônica eu subia para Santa todo fim de semana, bebia uma cerveja no Mineiro enquanto lia a Folha do Centro de pé no balcão...